Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 146
Em geral, o vate não se faz de rogado para declamar seus poemas mas está de calunda, a vaidade ferida com a falta de respeito dos seus concidadãos; pede desculpas, mas… Tieta intervém:
- É claro que você vai dizer a poesia, não guarde agravo. De qualquer maneira tinha de recitar para mim que não pude ir, não é mesmo? – os olhos marotos postos em Barbozinha. – Então meu velho? Estamos esperando, lasque o verbo…
Barbozinha obedece. Amoroso trovador, submisso às ordens de sua musa, põe-se de pé, retira do bolso de dentro do paletó duas folhas de papel, caprichada caligrafia, sonoros alexandrinos. Pigarreia, solicita um gole de pinga para lavar a garganta, Araci corre a buscar. O poeta emborca a cachaça, estala a língua, estende a mão e desfralda a voz.
Arauto de boa nova, anuncia o nascimento de Cristo, pobre e nu, na manjedoura em Belém. Que venham as crianças de agreste, todas, sem excepção de nenhuma, participar da alegria universal, pois à infância pertence essa festa por decisão da benemérita Brastânio, cujos proprietários, nobres e magnânimos construtores da pátria grandiosa e justa, atiram braçadas de brindes valiosos no regaço da pobreza, transmudando as lágrimas das crianças desprovidas em risos álacres, em pipilar de pássaros, em gorjeios de aves felizes.
Buscara inspiração na Bíblia e na beleza do chão, do rio, do mar, molhara a pena nos profundos sentimentos de solidariedade humana. Assim iluminou obscuros lares com estrelas d’alva, comparou os directores da Brastânio a novos Reis Magos descobrindo os ásperos caminhos de Agreste, trazendo nas mãos da bondade, ouro, mirra e incenso. Rimou a pobreza do povo com a grandeza nacional, o infeliz menino dos outeiros de Agreste com o infame divino, rei da Judeia, rimou titânio com Ascânio. Ascânio Trindade, capitão da aurora, a romper os muros do atraso, a abrir as comportas do progresso.
Leonora, empolgada, ergue-se em aplausos, os demais a acompanham: palmas e exclamações entusiásticas. Triunfo completo a compensar a decepção anterior.
- Chegue aqui, quero-te dar um beijo! – exige Tieta e beija o vate na face maltratada, imprimindo-lhe nas rugas as marcas dos lábios, em baton cor de vinho.
- Bravos, Barbozinha, gostei muito. Merecido, esse elogio a Ascânio – considera dona Milú. – Ascânio não desanima e se um dia Agreste voltar a valer alguma coisa, a ele se deve. A ele e a você Tieta. Foi você chegar e tudo mudou: foi como um clarão nos iluminando. Não falo da electricidade de Paulo Afonso, falo de qualquer coisa que eu mesma não sei explicar, não passo de uma velha boboca. Uma coisa que a gente não vê, não toca mas existe, uma luz que veio com você, minha filha, Deus a abençoe.
Aproxima-se da rede e beija Tieta com carinho maternal. Despede-se. - Vou-me embora, Carmô deve estar sobre brasas, vai-me dizer muitas e boas. Com razão.
Ascânio pede-lhe mais um minuto apenas, por favor. Pondo-se também de pé, faz sua proclamação aos povos, anuncia a nova era, a era da Brastânio. Não acrescentou seu nome ao da grande indústria de dióxido de titânio, por desnecessário. Merecendo apoio e aplauso dona Milú, já o fizera De Matos Barbosa em versos que Leonora decorou e repete baixinho, entreabertos os lábios de carmim.
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