segunda-feira, outubro 17, 2016

Assim Nasceu Portugal
(Domingos Amaral)

Episódio Nº 97
















Obrigados a entrar nelas, fizeram-no com relutância medrosa e ainda mais atemorizados ficaram quando uma das primeiras jangadas, provavelmente depois de ter embatido numa rocha, se desmanchou, atirando com dezenas de homens à água. Com um nó na garganta vimos muitos deles morrerem afogados, seja porque não sabiam nadar ou porque o peso das armas o impedia.

Um espectáculo semelhante se passou quando outra jangada, repleta de cavalos, se virou igualmente, atirando com bestas e homens para uma deriva trágica e aflitiva, a que muitos assistiram já na margem oposta, como foi o meu caso, deixando-me a pensar como fora possível termos cometido tão disparatado desafio à Providência que assim nos castigava pela nossa estúpida e infantil ousadia.

Afonso Henriques, sempre ao comando, foi dos primeiros a atravessarem o rio, para mostrar a todos que nada o deteria. Montado no seu colossal cavalo asturiano, que lhe oferecera Gonçalo, obrigava os homens a remarem, com uma fé inabalável na sua boa estrela.

O príncipe estava apostado em entrar pelos portões do castelo de Tui naquele enorme animal, não só para mostrar ao seu amigo que o presente natalício contribuíra para o seu salvamento, mas provavelmente para impressionar Chamoa, que julgávamos assistir ao desembarque numa das torres do castelo.

Como um mal nunca vem só, a meio da manhã e quando ainda não tínhamos mil homens desembarcados, os nossos flancos foram fustigados por saraivadas de flechas, atiradas por arqueiros escondidos no meio das árvores.

Quando os nossos ripostaram, ouviu-se um primeiro tropel e uma carga de cavaleiros apareceu pela estrada que levava ao castelo, para nos fustigar.

O primeiro embate foi intenso, mas fomos capazes de o suster. O que não esperávamos é que, quando a primeira vaga de galegos deu meia volta se apresentasse uma segunda. E depois uma terceira e uma quarta, centenas de cavaleiros que nos zurziam sem descanso, dizimando as linhas avançadas e forçando o nosso recuo para o rio.

Como poderia o Trava ter tanta gente com ele? A dúvida durou até meio da tarde, quando vimos um estandarte do maligno Gelmires, arcebispo de Compostela, a esvoaçarem ao lado das insígnias do Tava.

Aqueles dois velhos inimigos do Condado Portucalense haviam-se unido de novo para nos desgraçar e estavam a consegui-lo!

Empurrados para as águas do Minho pela cavalaria galega, os portucalenses chocavam com os compatriotas que desembarcavam e uma terrível barafunda nasceu junto à margem.

Confundidos, os nossos soldados não sabiam se haviam de avançar ou recuar e os barqueiros das jangadas hesitavam. Deviam desembarcar os que traziam ou encher as jangadas com os que recuavam?

Naquelas centenas de metros que iam entre a frente dos combates e o rio a trapalhada instalou-se e nem Peres Cativo, um alferes experiente, nem eu próprio, conseguíamos já ser ouvidos.

Vi Afonso Henriques, sempre indomável, volteando no ar a sua enorme espada que pertencera ao seu pai, obrigando os que estavam junto dele a fincar o pé na lama, enfrentando as cargas adversárias, esporeando o cavalo aos gritos, animando os homens para que não esmorecessem.


Com a sua vontade férrea, talvez tivesse conseguido suster o receio geral, mas não evitou ser sabotado por um traidor improvável, o seu cavalo asturiano.

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