(Domingos Amaral)
Episódio Nº 97
Obrigados a entrar nelas, fizeram-no com relutância medrosa e ainda mais atemorizados ficaram quando uma das primeiras jangadas, provavelmente depois de ter embatido numa rocha, se desmanchou, atirando com dezenas de homens à água. Com um nó na garganta vimos muitos deles morrerem afogados, seja porque não sabiam nadar ou porque o peso das armas o impedia.
Um espectáculo semelhante se
passou quando outra jangada, repleta de cavalos, se virou igualmente, atirando
com bestas e homens para uma deriva trágica e aflitiva, a que muitos assistiram
já na margem oposta, como foi o meu caso, deixando-me a pensar como fora
possível termos cometido tão disparatado desafio à Providência que assim nos
castigava pela nossa estúpida e infantil ousadia.
Afonso Henriques, sempre ao
comando, foi dos primeiros a atravessarem o rio, para mostrar a todos que nada
o deteria. Montado no seu colossal cavalo asturiano, que lhe oferecera Gonçalo,
obrigava os homens a remarem, com uma fé inabalável na sua boa estrela.
O príncipe estava apostado
em entrar pelos portões do castelo de Tui naquele enorme animal, não só para
mostrar ao seu amigo que o presente natalício contribuíra para o seu
salvamento, mas provavelmente para impressionar Chamoa, que julgávamos assistir
ao desembarque numa das torres do castelo.
Como um mal nunca vem só, a
meio da manhã e quando ainda não tínhamos mil homens desembarcados, os nossos
flancos foram fustigados por saraivadas de flechas, atiradas por arqueiros
escondidos no meio das árvores.
Quando os nossos ripostaram,
ouviu-se um primeiro tropel e uma carga de cavaleiros apareceu pela estrada que
levava ao castelo, para nos fustigar.
O primeiro embate foi
intenso, mas fomos capazes de o suster. O que não esperávamos é que, quando a
primeira vaga de galegos deu meia volta se apresentasse uma segunda. E depois
uma terceira e uma quarta, centenas de cavaleiros que nos zurziam sem descanso,
dizimando as linhas avançadas e forçando o nosso recuo para o rio.
Como poderia o Trava ter
tanta gente com ele? A dúvida durou até meio da tarde, quando vimos um
estandarte do maligno Gelmires, arcebispo de Compostela, a esvoaçarem ao lado
das insígnias do Tava.
Aqueles dois velhos inimigos
do Condado Portucalense haviam-se unido de novo para nos desgraçar e estavam a
consegui-lo!
Empurrados para as águas do
Minho pela cavalaria galega, os portucalenses chocavam com os compatriotas que
desembarcavam e uma terrível barafunda nasceu junto à margem.
Confundidos, os nossos
soldados não sabiam se haviam de avançar ou recuar e os barqueiros das jangadas
hesitavam. Deviam desembarcar os que traziam ou encher as jangadas com os que
recuavam?
Naquelas centenas de metros
que iam entre a frente dos combates e o rio a trapalhada instalou-se e nem
Peres Cativo, um alferes experiente, nem eu próprio, conseguíamos já ser
ouvidos.
Vi Afonso Henriques, sempre
indomável, volteando no ar a sua enorme espada que pertencera ao seu pai,
obrigando os que estavam junto dele a fincar o pé na lama, enfrentando as
cargas adversárias, esporeando o cavalo aos gritos, animando os homens para que
não esmorecessem.
Com a sua vontade férrea,
talvez tivesse conseguido suster o receio geral, mas não evitou ser sabotado
por um traidor improvável, o seu cavalo asturiano.
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