segunda-feira, dezembro 05, 2016

A Zanga do Presidente

Eduardo dos Santos de 

Angola com Portugal

Por Seixas da Costa embaixador










Não posso ficar indiferente. Combati em Angola, lá ia morrendo, e sempre discordei daquela guerra. A independência dos povos pareceu-me ser sempre de uma justiça óbvia. Vivi, entre 1964/65, mais de um ano, "nas terras do Savimbi", no Alto Zambeze, no Lumbala, Distrito do Moxico, e nunca viria a simpatizar com ele. Sempre me pareceu demagógico e possuir um fundo bárbaro nada recomendável. 

Desrespeitou e humilhou a autoridade tradicional, a rainha Nhakatolo, dos Luenas,  que tive oportunidade de conhecer pessoalmente, no Lumbala, quando se foi queixar ao Governador Geral, o recém falecido Silvino Silvério Marques, em visita à região, nestes termos:

-  "Governador, os teus elefantes causam muito prejuízo. Manda um caçador dar tiros neles..." e era verdade, ficavam sem um pé de mandioca. Muitas vezes adormeci ao som do bater de latas para enxotar os elefantes... finalmente, Seixas da Costa, mais novo que eu, tirámos o mesmo curso no Instituto de Ciências Sociais e com uma inteligência brilhante, sempre desempenhou cargos de responsabilidade no país.

Sobre a reacção do Presidente Eduardo dos Santos, que afirmou em discurso da Nação, cortar com as Relações Privilegiadas que tem connosco porque tem havido fugas de informação em casos de justiça que envolvem e comprometem altas figuras do Estado de Angola,  Seixas da Costa, sobre este momento desagradável das relações entre os dois países, escreveu o seguinte artigo que transcrevo e subscrevo na íntegra:

"Num dia dos anos 80, numa conversa em Luanda, quando era por lá diplomata, uma figura que viria a ter responsabilidades nas relações externas daquele país disse-me, mais ou menos, esta frase: "O peso da guerra colonial é muito forte. Portugal e Angola estão "presos", um ao outro. Umas vezes, isso será uma coisa boa, noutras vai ser bastante má. O futuro estará nas mãos dos que melhor souberem gerir a impaciência e a irritação que, durante muitos anos, vai continuar a existir entre nós." Isto foi afirmado num momento menos bom das relações bilaterais, com guerra civil angolana e fortes tensões entre Luanda e Lisboa. Lembro-me dessa frase muitas vezes e ainda não encontrei razões para infirmar a sua justeza.
Durante quase quatro décadas de diplomacia, assisti a todos os registos possíveis na atitude portuguesa face a Angola. Não os vou tipificar a todos, mas sempre direi que foram desde um seguidismo quase subserviente, para "não aborrecer o Futungo", até a atitudes de grosseira ingerência na vida interna do país, deliberadamente provocatórias para o governo de Luanda. No primeiro dos casos, por realpolitik, económica ou estratégica, noutros casos pelo exacerbar de raivas de quem parece não se conformar com o fim do prazo de validade da atitude neo-colonial. Ambas as posturas permanecem ainda hoje por aí, continuando a ser caricaturalmente ridículas. E perigosas.
A primeira apressa-se a calar qualquer reacção a tudo quanto emane, oficial ou oficiosamente, de Luanda. Perante declarações de responsáveis ou editoriais furibundos da imprensa local, que descarregam ácidos comentários sobre Portugal e a figura de alguns portugueses, a propósito da atitude da nossa Justiça face a atos praticados por cidadãos angolanos em território português, logo surge a conhecida legião dos "angolorrealistas" a recomendar silêncio, à luz da sacrossanta protecção dos "interesses portugueses em Angola". Nalguns casos, a tese do "apaziguamento" vai até onde agora se viu.
A segunda é a velha escola da contestação da legitimidade do MPLA e das autoridades políticas angolanas em geral. Num primeiro tempo, essa doutrina apoiava-se numa patética hagiografia da UNITA, titulada pelos utentes dos "Jamba tours", cegos para a barbárie do líder do "Galo Negro". Mais recentemente, essa atitude transmutou-se e surge escudada nas preocupações éticas, apoiadas numa espécie de "droit de regard" paternalista, que parece autorizar a que Portugal possa dar-se ao luxo de ter opiniões firmes quanto ao modo como os angolanos, não apenas organizam o seu poder político, mas a própria distribuição interna dos seus recursos.
A relação entre Portugal e Angola é demasiado importante para ficar limitada por esta dicotomia. Como antigo profissional da diplomacia portuguesa, só posso lamentar que o nosso entendimento bilateral com Angola esteja, em permanência, dependente de humores induzidos do exterior ou motivada por agendas ideológicas. Da mesma forma, a nossa política externa não pode continuar num tropismo quase exclusivamente reativo, enredando-se, ciclicamente, em epifenómenos tristes e degradantes. E, embora nada tendo a ver com isso, devo admitir que isso possa também corresponder ao interesse de Angola, um Estado com um crescente perfil internacional, uma potência regional que não parece poder ter a menor conveniência de deixar-se arrastar, diretamente ou por intemediários oficiosos, numa espécie de esquizofrenia diplomática com a antiga potência colonial, a qual, a prolongar-se neste registo, se arrisca a conferir-lhe uma imagem de imaturidade no plano internacional.
Separemos, de uma vez por todas, as coisas: à Justiça o que é da Justiça, à política o que é da política!
Meço bem estas palavras: aos responsáveis angolanos deve ser dito, de forma clara e frontal, que não podemos deixar de considerar inamistosos comentários oficiosos, ou sem visível reação de distanciação oficial interna, que põem em causa a imagem de Portugal, bem como a honra e o funcionamento das nossas instituições judiciais, a pretexto de incidentes que envolvam figuras angolanas no nosso território; da mesma forma que não seria admissível, da parte oficial portuguesa, a expressão de suspeitas sobre o comportamento da Justiça angolana, num conjunto de casos em curso, que, embora pouco conhecidos, envolvem hoje interesses e a liberdade de cidadãos portugueses que vivem ou trabalham em Angola.
Cá como lá, nenhum operador da Justiça está acima da crítica, mas convém lembrar que os sistemas judiciais dispõem de meios próprios de contestação e recurso, que permitem regular posições que se opõem. A Justiça faz-se nos tribunais, não nos jornais. E, em Angola como em Portugal, ela deve atuar de forma independente, sem atender aos apelidos e às "cunhas".
Temos o dever, de uma vez por todas, de acabar com a ideia de que Portugal e Angola são dois países eternamente reféns um do outro, através de misteriosas conspirações, chantageados por interesses ou por ódios ideológicos ou outros. É obrigação dos responsáveis de ambas as partes dar passos através de um diálogo político frontal, no sentido de descrispar este ambiente, que não é salutar nem digno de dois Estados soberanos, unidos por muitos e legítimos interesses, que estão muito para além dos fait-divers de conjuntura.
Para o futuro, temos a obrigação de saber estruturar com Angola uma relação diplomática madura e sem tabus, por muito que isso possa desagradar aos "enragés" da vingança pós-colonial, de ambos os lados da fronteira, a qual, aliás, não existe entre nós. Resta a convicção de que, com o tempo, e também de ambos os lados, esses persistentes militantes da acrimónia bilateral acabem por cair no "caixote do lixo da História", citando um clássico que, cá como lá, já esteve mais na moda.
*) Embaixador



DN de 16.10.2013



PS Presidente de Angola desde 1979, retirou-se agora do poder ao fim de 37 anos. Como é hábito nos países africanos onde a democracia raramente funciona, quase estabeleceu um recorde de permanência no poder. Apesar da sua riqueza petrolífera, lamentada por Salazar quando foi descoberta, a sua população de 25 milhões tem 20 milhões de pobres... e 22% das suas crianças e jovens nem sequer sabem juntar as letras. 

No entanto, Angola tem um dos maiores consumos de champanhe per capita do mundo: vendem-se 240 mil garrafas por ano, quase todas em Luanda. Dos 25 milhões de angolanos, 20 milhões vivem em situação de pobreza.

Luanda é uma das capitais mais caras do mundo. Mas quase 80% da população urbana de Angola vive em bairros de lata. Quase 60% das famílias não têm acesso a fontes de água potável. As epidemias de malária e febre-amarela começaram no final do ano passado e já mataram mais de 14 mil pessoas no país.
Nada disto abona a favor do ex-presidente José Eduardo dos Santos ao fim de tantos anos de poder... Joaquim Chissano, em Moçambique, foi mesmo uma excepção.

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