Eduardo dos Santos
de
Angola com Portugal
Por Seixas da Costa – embaixador
Não posso ficar indiferente. Combati em Angola, lá ia morrendo, e sempre discordei daquela guerra. A independência dos povos pareceu-me ser sempre de uma justiça óbvia. Vivi, entre 1964/65, mais de um ano, "nas terras do Savimbi", no Alto Zambeze, no Lumbala, Distrito do Moxico, e nunca viria a simpatizar com ele. Sempre me pareceu demagógico e possuir um fundo bárbaro nada recomendável.
Desrespeitou e humilhou a autoridade tradicional, a rainha Nhakatolo, dos Luenas, que tive oportunidade de conhecer pessoalmente, no Lumbala, quando se foi queixar ao Governador Geral, o recém falecido Silvino Silvério Marques, em visita à região, nestes termos:
- "Governador, os teus elefantes causam muito prejuízo.
Manda um caçador dar tiros neles..." e era verdade, ficavam sem um pé de mandioca. Muitas
vezes adormeci ao som do bater de latas para enxotar os elefantes...
finalmente, Seixas da Costa, mais novo que eu, tirámos o mesmo curso no
Instituto de Ciências Sociais e com uma inteligência brilhante, sempre
desempenhou cargos de responsabilidade no país.
Sobre a reacção do
Presidente Eduardo dos Santos, que afirmou em discurso da Nação, cortar com as
Relações Privilegiadas que tem connosco porque tem havido fugas de informação
em casos de justiça que envolvem e comprometem altas figuras do Estado de
Angola, Seixas da Costa, sobre este momento desagradável das relações
entre os dois países, escreveu o seguinte artigo que transcrevo e subscrevo na
íntegra:
"Num
dia dos anos 80, numa conversa em Luanda, quando era por lá diplomata, uma
figura que viria a ter responsabilidades nas relações externas daquele país
disse-me, mais ou menos, esta frase: "O peso da guerra colonial é muito
forte. Portugal e Angola estão "presos", um ao outro. Umas vezes,
isso será uma coisa boa, noutras vai ser bastante má. O futuro estará nas mãos
dos que melhor souberem gerir a impaciência e a irritação que, durante muitos
anos, vai continuar a existir entre nós." Isto foi afirmado num momento menos
bom das relações bilaterais, com guerra civil angolana e fortes tensões entre
Luanda e Lisboa. Lembro-me dessa frase muitas vezes e ainda não encontrei
razões para infirmar a sua justeza.
Durante
quase quatro décadas de diplomacia, assisti a todos os registos possíveis na
atitude portuguesa face a Angola. Não os vou tipificar a todos, mas sempre
direi que foram desde um seguidismo quase subserviente, para "não
aborrecer o Futungo", até a atitudes de grosseira ingerência na vida
interna do país, deliberadamente provocatórias para o governo de Luanda. No
primeiro dos casos, por realpolitik, económica ou estratégica, noutros casos
pelo exacerbar de raivas de quem parece não se conformar com o fim do prazo de
validade da atitude neo-colonial. Ambas as posturas permanecem ainda hoje por
aí, continuando a ser caricaturalmente ridículas. E perigosas.
A primeira
apressa-se a calar qualquer reacção a tudo quanto emane, oficial ou
oficiosamente, de Luanda. Perante declarações de responsáveis ou editoriais
furibundos da imprensa local, que descarregam ácidos comentários sobre Portugal
e a figura de alguns portugueses, a propósito da atitude da nossa Justiça face
a atos praticados por cidadãos angolanos em território português, logo surge a
conhecida legião dos "angolorrealistas" a recomendar silêncio, à luz
da sacrossanta protecção dos "interesses portugueses em Angola".
Nalguns casos, a tese do "apaziguamento" vai até onde agora se viu.
A segunda
é a velha escola da contestação da legitimidade do MPLA e das autoridades
políticas angolanas em
geral. Num primeiro tempo, essa doutrina apoiava-se numa
patética hagiografia da UNITA, titulada pelos utentes dos "Jamba
tours", cegos para a barbárie do líder do "Galo Negro". Mais
recentemente, essa atitude transmutou-se e surge escudada nas preocupações
éticas, apoiadas numa espécie de "droit de regard" paternalista, que
parece autorizar a que Portugal possa dar-se ao luxo de ter opiniões firmes
quanto ao modo como os angolanos, não apenas organizam o seu poder político,
mas a própria distribuição interna dos seus recursos.
A relação
entre Portugal e Angola é demasiado importante para ficar limitada por esta
dicotomia. Como antigo profissional da diplomacia portuguesa, só posso lamentar
que o nosso entendimento bilateral com Angola esteja, em permanência,
dependente de humores induzidos do exterior ou motivada por agendas
ideológicas. Da mesma forma, a nossa política externa não pode continuar num
tropismo quase exclusivamente reativo, enredando-se, ciclicamente, em
epifenómenos tristes e degradantes. E, embora nada tendo a ver com isso, devo
admitir que isso possa também corresponder ao interesse de Angola, um Estado
com um crescente perfil internacional, uma potência regional que não parece
poder ter a menor conveniência de deixar-se arrastar, diretamente ou por
intemediários oficiosos, numa espécie de esqui zofrenia
diplomática com a antiga potência colonial, a qual, a prolongar-se neste
registo, se arrisca a conferir-lhe uma imagem de imaturidade no plano
internacional.
Separemos,
de uma vez por todas, as coisas: à Justiça o que é da Justiça, à política o que
é da política!
Meço bem
estas palavras: aos responsáveis angolanos deve ser dito, de forma clara e
frontal, que não podemos deixar de considerar inamistosos comentários oficiosos,
ou sem visível reação de distanciação oficial interna, que põem em causa a
imagem de Portugal, bem como a honra e o funcionamento das nossas instituições
judiciais, a pretexto de incidentes que envolvam figuras angolanas no nosso
território; da mesma forma que não seria admissível, da parte oficial
portuguesa, a expressão de suspeitas sobre o comportamento da Justiça angolana,
num conjunto de casos em curso, que, embora pouco conhecidos, envolvem hoje
interesses e a liberdade de cidadãos portugueses que vivem ou trabalham em
Angola.
Cá como
lá, nenhum operador da Justiça está acima da crítica, mas convém lembrar que os
sistemas judiciais dispõem de meios próprios de contestação e recurso, que
permitem regular posições que se opõem. A Justiça faz-se nos tribunais, não nos
jornais. E, em Angola como em Portugal, ela deve atuar de forma independente,
sem atender aos apelidos e às "cunhas".
Temos o
dever, de uma vez por todas, de acabar com a ideia de que Portugal e Angola são
dois países eternamente reféns um do outro, através de misteriosas
conspirações, chantageados por interesses ou por ódios ideológicos ou outros. É
obrigação dos responsáveis de ambas as partes dar passos através de um diálogo
político frontal, no sentido de descrispar este ambiente, que não é salutar nem
digno de dois Estados soberanos, unidos por muitos e legítimos interesses, que
estão muito para além dos fait-divers de conjuntura.
Para o
futuro, temos a obrigação de saber estruturar com Angola uma relação
diplomática madura e sem tabus, por muito que isso possa desagradar aos
"enragés" da vingança pós-colonial, de ambos os lados da fronteira, a
qual, aliás, não existe entre nós. Resta a convicção de que, com o tempo, e
também de ambos os lados, esses persistentes militantes da acrimónia bilateral
acabem por cair no "caixote do lixo da História", citando um clássico
que, cá como lá, já esteve mais na moda.
*)
Embaixador
DN de 16.10.2013
PS –
Presidente de Angola desde 1979, retirou-se agora do poder ao fim de 37 anos.
Como é hábito nos países africanos onde a democracia raramente funciona, quase
estabeleceu um recorde de permanência no poder. Apesar da sua riqueza
petrolífera, lamentada por Salazar quando foi descoberta, a sua população de 25
milhões tem 20 milhões de pobres... e 22% das suas crianças e jovens nem sequer
sabem juntar as letras.
No entanto, Angola tem um dos maiores consumos de champanhe per capita do mundo: vendem-se 240 mil garrafas por ano, quase todasem Luanda. Dos 25 milhões
de angolanos, 20 milhões vivem em situação de pobreza.
No entanto, Angola tem um dos maiores consumos de champanhe per capita do mundo: vendem-se 240 mil garrafas por ano, quase todas
Luanda é uma das capitais mais caras do mundo. Mas quase 80% da população urbana de Angola vive em bairros de lata. Quase 60% das famílias não têm acesso a fontes de água potável. As epidemias de malária e febre-amarela começaram no final do ano passado e já mataram mais de 14 mil pessoas no país.
Nada disto abona a favor do ex-presidente José Eduardo dos
Santos ao fim de tantos anos de poder... Joaquim Chissano, em Moçambique, foi mesmo uma excepção.
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