(Mia Couto)
Episódio Nº 15
Nem me virei. Segui, encolhido, governado
só pelo medo. É que, naquele preciso momento, um esticão na linha me indicava a
presença de um peixe namordiscando o anzol. Mas eu não queria contrariação com
o adivinho, fingi nada acontecer.
As sacudidelas na linha confirmavam-me que
eu amarrara um peixão enfeitado de peso e tamanho. Mas eu, desatrevido, não
mexia nem bulia. Meu pai, não sei como, notou os estremeções na linha.
- Não vai puxar o peixe?
Eu sem saber nem acto nem palavra. Continuei
olhando o nada, a fingir-me de falecido. O medo nasceu connosco, é o medo que
nos aperta o nascimento a pontos de nos estrearmos com lágrimas.
- Vá, puxa a linha!
Se ele era cego como se apercebia dos puxões
na linha? Pareceu adivinhar minha dúvida:
- Depois destes anos tantos nem preciso ter
olhos para saber que está a picar.
Sentou-se, a meu lado. Mesmo junto à berma
do cais ele fez balancear as pernas. Eu tremia com medo da carantonheação dele.
Sua voz desapropriava a minha:
- Onde está teu isco?
Sem dom de resposta, apontei as minhocas
na lata. O homem enfiou dois dedos grossos na boca da lata e retirou o verme
estremexente, reviravirando-se no vazio.
Falou na sua língua caseira sobre peixe e
pescaria. Na língua do nosso lugar não há palavra exacta para dizer pescar. Diz-se
“matar o peixe”. Não há palavra própria para dizer barco. E oceano se diz
assim: “ o lugar grande”. Somos gente da terra, o mar é recente.
- Estou abençoando, mas não é
a isca.
- Então?
- Estou abençoando-lhe a si.
Meu pai: será que ele me reconhecia?
Depois me olhou com aquele fundo vazio que me impossibilitava de o encarar. E
disse assim:
- Você, miúdo, vou-lhe dizer
uma seguinte coisa: sou cego para coisa vivente. Mas vejo bem do lado da morte.
E estou ver sua morte...
- Minha morte?
- Você há de morrer afogado
em lençol faz conta os panos virassem ondas de água.
- O senhor sabe quem eu sou?
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