quinta-feira, fevereiro 23, 2017

Mar me quer
(Mia Couto)



Episódio Nº 18









O povo se juntava para tirar proveito daquela visão. Ainda hoje me custa lembrar quanto eu me insujeitava a tais vexames.

A mulher andava a brincar ao gato sem rato? Que deveria eu fazer? Me deixei ficar quieto sentado em sombra sempre fingindo certificar-me do estado do mar, a ver se a cabeça carregava uma ideia.

Um feio dia me chegou a direcção. Eu lhe devia seguir, sem que ninguém notasse. Organizei assim: aldrabei o calendário. Arranjei um de um ano muito transacto, afixei ali nas vistas da parede da cozinha. Henriquinha, nessa manhã, me inquiriu o dia que era.

- Não sei, mulher. Veja no calendário.

Ela espreitou. A voz, admirada, chegou-me ao quarto:

 - Afinal, hoje é Domingo?

No princípio, ela insistiu que havia engano. Não podia ser domingo. É, respondi eu, os domingos são assim, são iguais aos dias da semana mas só que de gravata. É verdade, Henriquinha, a gente nem dá pela semana e já estamos numa outra.

Que vida esta, de pescador, que não tem dias nem marés! E mais isto, menos aquilo. Falei muito para a distrair.

- Ainda você tem sorte, Henriquinha. Seu tempo começa sempre a horas certas, levanta e põe, deita e acorda. Agora, para mim, o meu sol é o mar. Sabe-se lá o quando dele?

Henriquinha parecia nem ouvir. Foi ao guarda-fato e retirou o cerimonioso vestido negro.

- Vai sair?

- Esqueceu-se que nos domingos sempre cumpro obrigação de Deus?

Cá dentro, sorri. Ela tinha caído. Ainda me ocorreu, por instante, um peso de culpa. Ainda pensei em desarmadilhar o momento. Mas a alma foi-me mais forte que o sentimento. E lá fui atrás da mulher, em cuidadosa perseguição, atrás de muro, moita, arbusto. Até que chegamos ao barranco de terra vermelha.

Henriquinha parou-se no limiar onde o abismo se despenha até à praia, bem junto à rebentação. Fiquei espreitando.

Àquela hora não havia ninguém. Talvez porque não era domingo, ninguém esperava o espectáculo dela àquele dia.

Henriquinha, então, começou-se a ondear parecia uma dança, em baixo de uma música que só ela escutava. De costas para mim, ela rebolinhava-se de prazer, como se uma invisível chuvinha tombasse sobre ela.

Começou a puxar o vestido até meio do corpo, a cintura dela espreitava entre a luz e as mãos. Depois foi afastando os panos que lhe cobriam. Cada veste caía no chão parecia folha morta tombando na minha surpresa.

Me veio, então, junto com a raiva, um baboso desejo daquela mulher. Como se nunca lhe tivesse visto nem tocado, como se ela fosse mulher inatingível. Ainda pensei: vou lá, me despenteio com ela, desato um namoro de afiar carne.


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