terça-feira, fevereiro 07, 2017

Mar me quer...
Mia Couto                                                                       


Episódio Nº 10





Todos sabíamos que sim, que ela se irremediara nos fundos, lá onde os corais florescem em peixes. Todos sabíamos menos o velho Agualberto, desguarnecido de noção.
Todas as tardes ele levava para dentro do mar cestos de comida e rações de água doce.
Mergulhava e se deixava em permanência alongada. Depois, regressava à superfície, satisfeito de tudo, medidas as contas com a saudade.
Cada vez que vinha à tona, porém, seus olhos se exibiam mais azuis. Um dia se lavariam de toda a cor, como as conchas que esbranquiçam. Aquilo parecia aplicação de um presságio, um mapa de seu pensamento: perder as vistas como perdera seu amor. E assim aconteceu: Agualberto ficou de olhos deslavados e nyca mais visitou as profundezas das águas.
Quando o azul lhe saíu dos olhos também meu pai se esboreou de casa. Foi-se. Eu era menino, acreditava que tudo tinha remédio. A saída de meu velho foi a primeira crença de que certas coisas, nessa vida, não têm reparo.
No mesmo tempo, tive que atender também o desjuízo de minha mãe. Ela não se conformou com aquele abandono. Porque já o meu velho se retirara há muito e ainda ela me dizia:
- Espera Zeca, primeiro vou pedir as licenças a seu pai!
Houvesse injúria ou lágrima ela sempre me consolava:
 - Deixe que vou queixar a seu pai!
Como se a partida dele fosse simples atraso de pescaria. Faz parte dos mandos, nunca se diz a um menino que ele é órfão. Assim minha mãe vestia ausência com panos de mentira.
- Esta semana já escreveu cartinha para ele?
Eu sorria triste mas ela nem me dava tempo.
Seu pai haveria de ficar contente em ler um papelinho seu. Ele havia de ficar contente a pontos de lágrima.
- Mas, mãe...
- Sabe, um dia uma lágrima dele caiu lá no mar. Ali mesmo, naquela onda onde tombou, a lágrima mudou-se num coral e foi ao fundo. Escreva a seu pai...
- Mas eu mãe... eu nem sei as letras como são.
Por isso você vai ter com o padre, frequentar na missão. Seu pai, depois, lhe há-de mandar uns dinheiros.
 - Está bem, mãe.
Depois, ela entrava na casinha, parecia atravessar a fogueira bem pelo meio das chamas. Fazia lembrar Maria Bailarinha, modos como ela se antigamentou dançando com o fogo. Mas minha mãe caminhava sobre as fogueiras e nada lhe acontecia.
Sem vontade do tempo, eu ficava na praia a passear os olhos pela noite. Minha mãe voltava, tempos depois, e me dizia:
- Vê as estrelas, Zeca? Sabe o que elas dizem?
- Não mãe.
- Sabe, filho a noite é uma carta que Deus escreve com letrinhas miuditas. Quando voltar da cidade você me há-de ler essa carta?
- Sim, mãe.


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