(Mia Couto)
Episódio Nº 20
Fui erguendo os olhos, avistando primeiro as madeiras
mastigadas, restos carcomidos de pássaros, penas de cinzas, tudo jazendo em paz
de deserto. A rede metálica mantinha-se intacta. Mas, à mistura daquela cinzentação,
surgiu-me a aparição de uma ave vivente, toda branca, rendilhando repentinos
voos.
Como sobrara aquela gaivota de tão total fogareiro?
Dona Luarmina, lentamente, se retirou. Fiquei só com
os restos da capoeira e uma lembrança de vazio, esvaziada de mim e de tudo. Minhas
mãos tremiam quando abri a porta da gaiola.
Sétimo Capítulo
Da primeira vez, eu senti o braço molhado. Estava
deitado, em meu leito, esperando o sono. De repente, um frio na pele me
alertou: por ali se derramava líqui do
escapado de alguma fresta. Foi então que a visão me horrorizou: a água, afinal,
vinha de todos os lados, do chão, do teto, a água corria a me buscar, sua língua
azul me vinha arrancar deste mundo. Não tardaria que perdesse respiração,
cercado por dentro e por fora.
Levantei-me e conforme escapava pelo quarto, o chão se
molhava. Alucinação, com certeza. Mas ficava no alaguado do tapete a prova de
veracidade.
Foi apenas a primeira vez. Essa visão de afogamento
passou a suceder sempre que adormecia. Às vezes me envolvia o mar, outras me
parecia afogar no meu próprio sangue. Mar e sangue, sangue e mar.
De onde vinham esses sinais? Passei em revista meus
antigamentes, recordei meu velho me dizer no dia em que no barco, acidentei meu
dedo:
- Chupa um pouco desse sangue.
Obedeci, como sempre fazia. Meu pai seguia meus gestos
com atenção que ele nunca punha em mim.
- Diz lá agora: o sangue tem o sabor de
quê?
Eu olhei o mar, sem dar outra resposta. Meu pai,
afinal, me estava a dizer o quê? Que trazemos oceanos circulando dentro de nós?
Que há viagens que temos de fazer só no íntimo de nós?
Ficarei sempre sem saber. Lições que o velho Agualberto me deu sempre foram
assim: esqui va e mal desenhadas.
O sangue e o mar, suas parecenças me ressurgiam agora
em punição de alguma desobediência. Só compreendi então a complexa razão
daqueles pesadelos. Quando se sentiu morrer, meu pai se dirigiu a mim e pediu:
- Venha comigo me mostrar uns certos
lugares
Seus olhos já estavam todos brancos como as conchas
lambidas por muito sol.
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