quarta-feira, novembro 08, 2017

A Minha Última Operação
 na Guerra Colonial de Angola














No outro dia, ainda o sol não nascera e já tinha dado ordem para nos pormos a caminho continuando a subir o vale em marcha que só não era forçada porque as condições do terreno e da vegetação não o permitiam.

Era ténue a minha esperança de conseguir escapar à emboscada que de certo me esperaria em qualquer ponto do percurso.

Os guerrilheiros não podiam permitir que a tropa fosse ao seu terreno matar uma rapariga do seu povo da mesma forma que se caça uma gazela e saísse do emaranhado de toda aquela vegetação em total impunidade. Era para eles uma questão de honra.

Por isso, começamos a andar ainda quase de noite e continuamos a apressar o andamento na esperança de sair dali depressa, antes que tivessem tempo de armarem a espera.

Já era bem de dia quando o vale se bifurcou. Eu devia continuar em frente, sempre para norte, sempre por aquele vale, eram as ordens que eu tinha. O Quartel-General sabia bem que era ao longo dele que se encontravam as populações e por isso o itinerário era aquele e não outro.

Mas chegados àquela bifurcação decidi desrespeitar as ordens, seguir pelo vale da esquerda, de vegetação mais densa de tal forma que ninguém seria capaz de montar ali uma emboscada ou fosse o que fosse e em distância parecia-me encurtar caminho.

Disse aos homens para encherem os cantis num fio de água que por ali passava e foi nesse momento, com eles dobrados sobre si próprios, involuntariamente meio escondidos pela vegetação para recolherem a água, que o tiroteio começou.

Eles pensaram exatamente aquilo que eu iria fazer, aquele era o sítio certo para a emboscada, antes de fugir pelo vale da esquerda que tendo uma vegetação tão densa não permitiria qualquer acção militar.

Eu fui apanhado de pé, os tiros prosseguiam e eu de pé continuava num aparente e louco desafio: - "Vá, estou aqui, de pé, acertem-me se forem capazes, vinguem a vossa jovem que nós matamos”.

 - “Meu alferes, saia daí, esconda-se, que eles matam-no!” - gritou-me o Maia, (já falecido) deitado atrás de um tronco de uma árvore caída no terreno.

Dirigi-me para junto dele com o passo de quem muda de mesa na esplanada do café e com a inconsciência do perigo própria de quem não nasceu com vocação para aquelas coisas.

- “Meu alferes, as balas aos seus pés até levantavam pó!” -  disse-me ele quando me abriguei a seu lado.

Entretanto, alguém gritou que eles estavam em cima das árvores a fazerem fogo para cima de nós e logo tudo quanto tinha folhas e ramos foi varrido pelas rajadas das espingardas G3 e FN.

Nitidamente, o efeito surpresa tinha passado e agora o nosso maior poder de fogo estava a impor-se.

Chamei o soldado da bazuca, o “Capela”, e mandei-o disparar duas granadas na esperança de que alguma delas conseguisse passar por entre as árvores e explodisse contra a outra encosta do vale.

A primeira rebentou logo à nossa frente, deu cabo de uma árvore que estava muito próxima e “choveram” bocadinhos de madeira para cima de nós.

 - “Éh! pá, levanta o cano dessa merda para ver se consegues fazer a granada passar por cima das árvores!”

Inspirado pelos “deuses da guerra”, o “Capela”, à segunda tentativa, conseguiu que a granada passasse por entre as árvores, as sobrevoasse e estourasse contra a encosta do vale, no outro lado.

 O efeito ultrapassou tudo o que se poderia esperar: o estrondo do rebentamento multiplicado pelo eco, possível pelo facto das encostas serem suficientemente íngremes e próximas a funcionarem como paredes em frente uma da outra, parecia coisa do apocalipse.

De repente, vinte exércitos tinham entrado em cena e accionado os seus dispositivos de lançamento de granadas. Quando, finalmente, os rebentamentos se deixaram de ouvir, a guerra tinha acabado, a calma e o silêncio estabeleceram-se como se nada ali tivesse acontecido.

O homem da bazuca tinha acabado de ganhar a guerra… a bazuca e o eco.

Levantámo-nos lentamente olhando e perguntando uns pelos outros e inacreditavelmente estavam todos vivos, nem um ferido, apenas o sargento enfermeiro, de mais idade e pesado, tinha desmaiado de comoção mas estava a recuperar.

Tiveram a oportunidade de uma justa vingança e não a aproveitaram. Dispararam de surpresa de cima das árvores a distâncias que não eram muito grandes e poderiam ter-nos causado inúmeras baixas…éramos mais de cinquenta alvos.

Em vez disso, não acertaram em ninguém, a jovem não foi vingada… mas eles tentaram, cumpriram a sua obrigação, provavelmente com feridos ou mortos pois foram vistos alguns a atirarem-se das árvores, não sabemos se atingidos ou não.

A continuação da marcha foi penosa, momentos houve em que a vegetação de tão densa que era nos aprisionou de pernas e braços, obrigando a recuos e avanços que eram uma autêntica luta contra o emaranhado dos ramos.

Finalmente, exaustos de cansaço, fome e sede porque no meio de toda aquela confusão, na pressa de abandonar o local nem enchemos os cantis de água, lá chegamos ao destino, já de noite, mas vivos e sem feridos.

Aquilo que nos separou da morte, nesse dia, foi um simples capricho do acaso. Hoje, mais de 5o anos depois, a minha convicção continua a ser a mesma. O jogo do acaso, "o que tem que ser ou não ser, na manhã daquele dia, no norte de Angola, poupou-nos a vida, as nossas humildes vidas.

Pensei muitas vezes, ao longo de todos estes anos, naquela jovem com um sentimento de culpa pela sua morte.

Propositadamente, não quis vê-la para não lhe recordar o rosto pela vida fora mas é fácil imaginá-lo e ela tem-me acompanhado, sinal de que a minha consciência não está completamente descansada.

Afinal, eu era o comandante daquela Operação e antes dela começar deveria ter dado instruções a todos os soldados para que, a menos que fôssemos atacados, ninguém daria tiros sem minha autorização.

Esta ordem ficou por dar e custou a vida àquela rapariga e a minha consciência carregará sempre esse peso.

Para ela, flores…todas as flores deste mundo!

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