terça-feira, agosto 12, 2014

Pai fez de mim, sua filha, amásia dele, todo mundo sabe.
TOCAIA GRANDE
 (Jorge Amado)

Episódio Nº 25













Com a mão amassava a saia, único sinal de constrangimento:

 - De comer não tem em casa, só cachaça. Nós não morreu de fome pro mode o socorro dos vizinhos e porque eu fui prós matos com quem quis me pagar, correndo risco: se Pai chega a saber, tinha me matado.

Natário ouvia sem fazer comentários. Bernarda fungou, o
choro ameaçava irromper mas ela o segurou no fundo da garganta, seu ânimo fora temperado em fogo lento. Arregaçou a ponta do vestido para com ela apagar o ardor da vista.

 O Capitão reparou na coxa maciça, percebeu a curva da bunda; a afilhada comera o pão que o diabo amassou.

 Morto de pena - pobre menina! - sentiu o coração confranger-se mas os olhos persistiram fixos, nublados de cobiça até que a rapariga soltou a saia e prosseguiu:

 -  Pai fez de mim, sua filha, amásia dele, todo mundo sabe.

Enquanto Mãe foi viva, sem fala e sem acção, me sujeitei, não ia deixar Mãe morrer sozinha. Mas depois que nós enterrou ela, me toquei embora — Outra vez fitou o padrinho para afirmar:

 — Quem pensou que eu tava de acordo, se enganou. Eu tava era na casa do sem-jeito com Mãe naquele estado.

Estava na casa do sem-jeito, verdade pura, mas Natário apenas informou:

 - Não soube da morte de comadre Ana.

 - Faz uns vinte dias que faltou. Mandei um recado pra vosmicê na Atalaia. Não lhe deram?

 - Estava de viagem, só agora tou voltando. E Irá?

 - Ficou com Pai.

 - E se ele fizer com Irá o mesmo que fez com tu?

 - Com Irá, padrinho? Mas é novinha por demais, não tem
ainda onze anos e nem botou sangue.

 - E o compadre é homem de arreparar nessas bobagens?

Na casa de Luíza Mocotó, no Rio do Braço, tem uma de dez anos fazendo a vida. Diz-que foi o pai que arrombou. O que mais tem por aqui é pé de cacau e papa-cria.

Constatava sem comentar, era assim é se acabou. No silêncio
pesado de intenções e pensamentos, o Capitão empurrou com o pé as palmas que faziam vez de porta.

 Estendeu a mão, tocou o vestido de bulgariana colado na pele da afilhada. Bernarda não se moveu nem baixou os olhos.

Sua afilhada, meninazinha, vinha correndo, nua e suja, pendurar- se em seu pescoço. Natário lhe oferecia uma moeda de vintém mas ela recusava. Queria, isso sim, montar em seu cangote, segurar as abas do chapéu de couro, brincar.

Cresceu adormecendo na rede, ressonando contra o peito do capanga, rindo quando ele lhe fazia cócegas na sola dos pés. O universo da criança se resumia no padrinho, tirante ele existia tão-somente um deserto de desolação e indiferença.

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