segunda-feira, março 23, 2015

Hoje não pode ser , tou de boi...
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)


Episódio Nº 204

















Somente então desejou boa noite, tendo antes se colocado às ordens. Caso viessem a precisar de alguma coisa, não tivessem acanhamento, podiam chamá-lo na oficina a qualquer hora.

Partiu em companhia de Agnaldo, precedidos por Alma Penada. Da porta, vão mal coberto por uma palma de coqueiro-de-dendê Diva os viu partir: o cachorro, o irmão e o ferreiro.

Permaneceu por um momento a contemplar a lua cheia, cravada sobre o rio. Haviam chegado, finalmente.

3

Dinorá desdenhou da rede, preferindo estender-se no catre, junto a Lia: entre elas o menino. Na quentura dos corpos, o choramingas adormeceu e em seguida a mãe ressonou, morta de cansada. Também o inquieto mal-dormir de Lia mais adiante se acalmou e a grávida por fim pôde esquecer o peso e o volume do ventre ancho e túmido.

Sozinha na rede, pernas e braços encolhidos, Diva prosseguiu acordada, atenta aos rumores que se sucediam na Baixa dos
Sapos ou que lá ressoavam vindos do descampado. Ouviu passos, palavras soltas, sobras de riso: o movimento ia crescendo à proporção que a noite se completava no vale de Tocaia Grande.

Diva percebeu o ressoar de cascos na distância, escutou nomes de animais apregoados por tropeiros e ajudantes: Cangerão, flor da Mata, Coscorote, Diamante, Marisca, égua da peste!

De um barraco próximo chegaram pedaços de diálogo:

- Hoje não pode ser, tou de boi... — desculpava-se a mulher.

- Puta merda, que urucubaca! - Lastimava o homem.

De repente ouviu alguém gritar no meio do silêncio o apelido negro:

— Tição! Oi, Tiçãol

Sem dúvida um tropeiro em busca dos serviços do ferrador de burros que pelo visto atendera com presteza pois o apelo não se repetiu.

A rede exalava um cheiro forte, provinha do negro certamente, e a envolvia. Ali ele suara nas noites de calor, nos braços das mulheres, e o suor impregnara no tecido seu odor de homem, sua inhaca de macho, seu perfume.

Embriagador, o aroma espesso a inebriava; Diva sentia-se como na noite do passado São João quando abusara do licor de jenipapo. Uma tontura, a cabeça pesada a pique de sofrer uma vertigem.

Não conseguia mergulhar nas profundas do sono, desligar-se das lembranças da tarde. Contudo não estava inteiramente desperta, vagava no embalo da rede, presa à peçonha daquele cheiro que já sentira antes na oficina quando o ferreiro espoucara em riso, erguido diante da bigorna.

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