segunda-feira, novembro 26, 2007

Educação para o consumo


Educação para o Consumo


Leio nos jornais que o nível de endividamento dos portugueses já ultrapassou, em muito, os 100% e como isto só pode ser um valor médio eu faço ideia do que, em certos casos, esta situação não poderá atingir.

É certo que parte considerável desta dívida tem a ver com o crédito à habitação uma vez que a partir de um certo momento os portugueses fizeram as contas e chegaram à conclusão que se haviam de passar a vida a pagar uma renda sem que a casa alguma vez fosse deles, fazia mais sentido que em vez da renda pagassem uma prestação ao Banco, mesmo que fosse um pouco mais cara, mesmo que levasse muitos anos a pagar.

Ao fim de todos esses anos sempre teriam uma casa para deixar aos filhos e se a morte os surpreendesse prematuramente a casa até ficaria automaticamente paga.

Isto foi assim num determinado contexto especialmente favorável principalmente pela reduzida taxa de juros e por uma situação do emprego relativamente estável e generalizado, em muitos casos, a ambos os cônjuges.

Claro que no fim das prestações a casa é paga duas ou três vezes mas isso é o negócio dos bancos para os quais este tipo de crédito constituiu uma autêntica galinha dos ovos de ouro.

O pior é quando, a seguir à casa, os portugueses começam a pedir dinheiro para comprar o carro, depois para fazerem obras na casa, a seguir para irem de férias de acordo com o slogan do “ vá primeiro e pague depois”e, finalmente, para o consumo, todo o consumo, desde as compras do super mercado aos livros para os filhos no início dos anos lectivos, etc…

Os débitos avolumam-se e acumulam-se e se alguma coisa de mau acontece ao casal: doença, desemprego, divórcio, etc…temos, de imediato, uma situação de ruptura em que já não é possível contrair mais dívidas para pagar as anteriores.

Não obstante, com toda a desfaçatez, os Bancos continuam a oferecer mais dinheiro que será entregue de um dia para o outro a partir de um simples telefonema…

É a volúpia do consumo, a simplicidade dos cartões de crédito que agora até servem para cortar as pizas (veja-se até que ponto chega a alienação), o poder de persuasão da publicidade que vende tudo, inclusive presidentes da República, segundo certos gurus, enfim, um conjunto de razões que formam uma armadilha, uma teia, um conluio que vai arrastando para o abismo os mais fracos, distraídos e optimistas, aqueles que só pensam o hoje pela dificuldade que têm em pensar o amanhã.

São estes os tempos que vivemos proporcionados pelo sistema capitalista, máquina tão poderosa de produzir riqueza quanto deficiente na sua distribuição.

O Estado faz tentativas para corrigir essas imperfeições mas a remuneração do grande capital e a sua cada vez maior concentração facilmente deixa perceber que o verdadeiro poder está a passar-se do político para o económico e contra isso não há democracia que resista pois os verdadeiros senhores do poder, sentados nos Conselhos de Administração dos grandes Grupos Económicos, não se submetem ao escrutínio das urnas.

Mas regressando ao nosso tema, nos meus curtos e rapidíssimos sessenta e oito anos de vida, foi-me dado conhecer outros tempos que não gosto de evocar por terem sido de grandes dificuldades para a maioria dos portugueses mas em que nada disto acontecia.

Não havia liberdade, também não havia que comer e estávamos a sair de uma guerra em que foram mortos mais de 6 milhões de pessoas mas que passou ao lado dos portugueses.

O regime mandou, então, que agradecêssemos a Salazar e à Virgem Santíssima e para a Europa começou uma nova vida de progresso, finalmente em paz e liberdade… até hoje.

Nós, impedidos de manifestar o nosso desagrado sob o risco de sermos alcunhados de comunistas e presos por constituirmos um perigo para a Ordem Pública e a Segurança do Estado, cá continuámos tristes e sós contando os tostões no fundo do bolso e bebendo copos de vinho tinto porque beber vinho era, então, dar de comer a um milhão de portugueses.

As compras faziam-se na mercearia do Sr. Zé e pagavam-se a pronto mas, claro, também havia os fiados e aí ele tirava o lápis de trás da orelha e escrevia num livrinho estreito e comprido que logo metia na gaveta.

As coisas de vestir, os ricos compravam-nas na Casa Africana ou nas Lojas do Chiado, os outros, nas feiras e mercados ou então na lojinha de tecidos do bairro e na capelista as linhas, elásticos e os botões.

Vivíamos então numa estrutura social que tinha como base os bairros e as aldeias e dentro de cada um todos pareciam conhecer-se porque eram sempre os mesmos, a mobilidade era pouca, viajar não era fácil e quando se partia era para longe, pelos chamados caminhos da emigração.

E vivia-se segundo princípios, códigos rígidos de comportamento, vigiados atentamente pelos padres e regedores nas aldeias e pelos polícias nas cidades.

O mundo era um bocadinho a preto e branco: pobres e ricos, bons e maus, céu para uns, inferno para os outros, tudo muito simples e compartimentado.

Quase sempre tudo se definia pelo nascimento: nasce pobre, vive e morre pobre, nasce rico morre rico, mesmo que pela vida fora perca tudo não perde a condição nem o estatuto.

Foi uma fase propensa a ideais políticos e sociais porque as desigualdades eram gritantes e não eram disfarçáveis, conviviam connosco, faziam parte da nossa vida, não tinham nada a ver com os sem abrigo que se podem ver hoje nas grandes cidades e também porque, creio, há um sentido de justiça nato em cada homem ou em quase todos.

Nasci na zona oriental de Lisboa, no Poço do Bispo, quase no último prédio da Rua José do Patrocínio, para lá dele a rua estreitava para metade e conduzia ao bairro chinês, provavelmente o mais antigo e importante dos ex-bairros de lata da nossa capital.

Eu era, então, um menino rico, o prédio, de renda, onde nasci e vivi os meus primeiros dez anos era revestido a azulejos, tinha degraus que davam acesso a um terraço e estava sobre elevado relativamente à rua para que as aguas das chuvas, no Inverno, quando desciam do bairro chinês em corrente tumultuosa que enchia a rua de lado a lado não incomodasse os moradores.

Nessa época não parecia mal que os ricos não fossem incomodados pelas chuvas mesmo quando ao lado os pobres viam os seus poucos haveres virem de escantilhão embrulhados pelas águas das cheias.

Pobres e ricos eram quase como castas e os meninos da rua, de pé descalço, não se misturavam com os ricos que usavam bons sapatos, meias e calças à golfe como se viam aos meninos ingleses.

Mas eu era uma criança e aquelas profundas diferenças, ali, tão próximas, à vista do meu terraço, desagradavam-me e eu invejava aqueles miúdos, era eu que tinha vergonha deles, que tinham liberdade para correrem descalços pelo meio da rua, alegres, aparentemente felizes, sem o risco, sequer, de serem atropelados pelos carros que não tinham acesso ao bairro chinês e o Vauxhall da série 12 que o meu pai comprou no fim da guerra foi o primeiro automóvel lá da rua.

O Consumismo era um conceito desconhecido e mesmo os ricos quando perdiam o que tinham ou era no jogo ou com amantes.

Mesmo aqueles que viviam então, remediadamente, para os níveis de vida da altura, sem chegarem a constituir ainda uma classe média, tinham mesmo que contar o dinheiro até à última moeda...é que o Estado Social ainda estava para nascer.

Quando fui colocado em Évora, no Regimento de Infantaria 16, como Aspirante a Oficial Miliciano, em 1961, ganhava 1.800 escudos (9 euros mensais) e lembro-me de um blusão de cabedal, verde, acolchoado por dentro, lindo, que era usado pelos Oficiais do Exército e fez as minhas delícias.

Comprei-o no Casão Militar a descontar no meu ordenado em 10 prestações mensais e anos mais tarde, na guerra, caiu-me do jeep numa das intermináveis viagens pelas picadas do Leste de Angola, nas chamadas terras do fim do mundo.

Espero que alguém o tenha encontrado e com ele se tenha defendido do frio que ali fazia de noite na época seca.

Eu ficarei, para sempre, com a saudade do Blusão que me fascinou como nenhuma outra peça de vestuário em toda a minha vida.

As pessoas, então, nem sequer tinham condições para se endividarem, isso era coisa para ricos, por isso os Bancos eram poucos e não acumulavam fortunas de ano para ano como agora acontece.

O Crédito ao Consumo em grande escala só apareceria muitos anos mais tarde com a progressiva ocupação de todo o país pelos Supermercados, os Grandes Espaços Comerciais e os portugueses, todos eles, transformados em consumidores, muitos deles compulsivos, nova doença da sociedade dos dias de hoje.

Por isso, eu e os da minha geração, que nascemos e vivemos numa sociedade que não era de Consumo, percebemos melhor a necessidade de Educar para o Consumo porque tendo vivido nos dois mundos temos a experiência de como era limitada a qualidade de vida do primeiro, da mesma forma que a do segundo é aliciante e perigosa.

(Cont.)



















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