terça-feira, outubro 30, 2007

Lembranças de guerra (cont)


Lembranças da Guerra (cont.)


Sejamos sinceros, perseguir e abater o inimigo, não incluindo nesta designação as populações que viviam fugidas no mato depois das matanças de Março de 1961, era um objectivo quase inalcançável para os nossos soldados.

A sua preparação em termos de treino militar para a guerra de guerrilha não existira, o seu recrutamento não satisfizera nenhum critério de selecção pois com excepção dos cegos e coxos toda a gente era apurada para ir para a guerra.

Os motoristas, por exemplo, chegavam a Angola praticamente sem saberem guiar e uma percentagem enorme de feridos e mortos ocorreram em consequência de desastres de viação o que era até referido, com um certo orgulho, pelos comandos militares, para afirmarem a ineficácia do inimigo.

Especialmente depois das mortes ocorridas na emboscada que vitimou os nossos colegas da Companhia 389, duas ou três semanas logo após a nossa chegada, o objectivo não era matar mas apenas não morrer.

Éramos um exército de presença, de ocupação, que pretendia assegurar a defesa das populações, manter abertas as vias de comunicação e permitir, lentamente, o retomar das actividades económicas.

Em resumo, dávamos o peito às balas e o corpo às minas do inimigo.

Para se ganhar a guerra, se ela tivesse uma vitória possível que não tinha, seria preciso um outro tipo de militares, profissionais da guerra sob todos os aspectos, homens seleccionados entre voluntários vocacionados e preparados para perseguir e combater os guerrilheiros.

Os responsáveis pela condução da guerra logo se aperceberam disto e ainda em 1962 iniciou-se a constituição de uma tropa de elite, os denominados Comandos, constituídos por militares que se destacavam pelas suas aptidões e que eram convidados ou se ofereciam para receber um treino especial dado por um antigo sargento da Legião Estrangeira, um italiano de seu nome Dante Vachi, especialista em guerra subversiva com experiências na Argélia e Indochina e que, no início das sessões de instrução gritava para os instruendos num italiano aportuguesado:

-“Prima Cosa: fare la barba, tropa suja não ganha a guerra”.

Que não se pedisse mais aos nossos soldados provenientes, na sua maioria esmagadora, do meio rural sem nenhuma experiência de vida fora das suas aldeias, com as mãos mais habituadas ao cabo das enxadas do que à delicadeza de um gatilho num meio hostil e completamente desconhecido.

Recordo um soldado meu, que quando juntamente com outros, mandei apear da viatura para fazerem umas rajadas para a esquerda e direita de uma curva da estrada que, mais à frente, me pareceu suspeita pôs-se a rezar, ajoelhado, em vez de fazer os tiros como lhe tinha mandado.

Até ao fim da comissão ficou com a alcunha do Pai Nosso.

Outro, depois de chegar ao aquartelamento após ter participado numa escolta confessava aos camaradas: “É pá, tive tanto medo que não me cabia no cu a cabeça de um alfinete”.

Também este ficou com a alcunha do Cabeça de Alfinete.

Consolava-os a ideia de que o tempo jogava a seu favor e que cada dia que passava era menos um que faltava para o regresso e como eles costumavam dizer para se animarem, o que era preciso “era acordar todos os dias com os dedos dos pés a mexer e a ramela ao canto do olho”.

E então, numa data que já não consigo recordar com precisão, talvez Abril/Maio de 63, no cumprimento de instruções do Comando do Batalhão, senão mesmo do Quartel-general, por pressão dos colonos, donos das roças de café, lá fui, com o meu Grupo de Combate, ocupar a fazenda Rainha Santa abandonada desde o início da guerra, dois anos antes, o que se assemelhava à “reconquista” de território ao inimigo.

Os donos da maioria destas fazendas estavam em Luanda ou mesmo em Portugal e recorriam a homens da sua confiança que com outros empregados asseguravam o trabalho nas roças com recurso aos bailundos, etnia proveniente do sul, distrito do Huambo, que constituíam agora a fonte da mão-de-obra perante a indisponibilidade dos quimbundos, fugidos no mato e em guerra aberta connosco.

A Rainha Santa ficava para sul do Pango e tinha limites com a fazenda Sana Clara por onde tínhamos que passar para seguir para o nosso destino.

Sem que fizesse muito sentido esta última fazenda continuava a laborar normalmente sem ter sido importunada pelos denominados “terroristas”, creio mesmo que nunca tinha deixado de funcionar muito embora pertencesse também a um português.

Não foi fácil obter esclarecimentos, as pessoas refugiavam-se num silêncio comprometido pois era evidente que tinha que haver uma razão qualquer e ela podia estar ligada a um entendimento com os guerrilheiros no entanto, o que me chegou aos ouvidos, mais tarde, é que o português, dono da fazenda, tinha por princípio respeitar as populações e mesmo relativamente à apropriação das terras não o tinha feito sem o acordo das autoridades indígenas locais.

Depois de um cafezinho que amavelmente nos foi oferecido seguimos viagem pela picada que ligava as duas propriedades e fizemo-lo num estado de espírito de grande descontracção pois era muito improvável que alguém estivesse à nossa espera.

Éramos os primeiros a aparecer ao fim de dois anos de guerra e não tínhamos, propriamente, efectuado nenhum anúncio sobre a nossa chegada e daí que não temíamos nenhuma surpresa desagradável, de tal maneira que até parámos pelo caminho para tentar caçar um veado que apareceu do lado direito da picada por entre o emaranhado das plantas do café, “invadido” pela vegetação exuberante da floresta equatorial dois anos após o abandono da cultura.

Imaginemos um monte alentejano com um grande terreiro ao centro, do lado esquerdo, casas térreas contíguas para alojar os trabalhadores e do direito, grandes armazéns onde se guardavam os grãos de café depois de secos no terreiro.

Era esta a fazenda Rainha Santa que nos apareceu depois de uma curva para a esquerda a subir ligeiramente, tudo por entre uma vegetação exuberante de um verde esplêndido, que teria engolido completamente a própria picada se ela se mantivesse sem circulação por mais uns tempos.

Ocupámos os armazéns e lembro-me, muito bem, que a minha cama, coisa de luxo, era um colchão em cima de uma porta que por lá estava no chão, abandonada, em cima de 4 tijolos com um mosqueteiro montado com a ajuda de uns paus.

Nessa noite, depois de estabelecida a segurança com recurso a sentinelas, dormimos descansadamente.

Na manhã seguinte, a primeira coisa a fazer era ir buscar água que passava, clarinha, num pequeno riacho que tínhamos atravessado antes de chegar à fazenda e, com toda a probabilidade, o inimigo lá estaria à nossa espera emboscado para nos fazer sentir que ali era a terra deles e não a nossa.

Era, assim, como uma espécie de um encontro anunciado com local e hora marcada para de manhã, cedo, antes do café.

Em outras ocasiões teria, talvez, exagerado nos perigos para redobrar os cuidados e a atenção mas daquela vez estava a ser completamente sincero e por isso chamei quatro soldados e o motorista e disse-lhes:

-“Eles vão lá estar à vossa espera por isso, apenas o motorista vai em cima da viatura, os restantes quatro vão a pé, dois à frente e dois atrás, um pouco afastados, bala na câmara, dedo no gatilho e todos os olhos atentos ao que possam ver de suspeito”.

Regressei ao armazém, preparei as coisas para fazer a barba, como dizia o italiano: “tropa suja não ganha a guerra”, mas ainda não estava completamente ensaboado quando começou o tiroteio.

Instintivamente, corri para a pistola-metralhadora e atravessei o terreiro aos tiros para o ar e a gritar juntamente com o restante pessoal: “ aí vai tropa, aí vai tropa, aí vai tropa” numa tal produção de fogo que teria feito fugir o inimigo mais temerário.

Depois, silencio, o que tinha acontecido lá em baixo não sabíamos, teria morrido ou ficado ferido algum dos nossos?

Minutos de ansiedade e logo, à distância, começou a ouvir-se o matraquear característico do motor do Unimog que mais me pareceu, então, música celestial e atrás, caminhando com todos os cuidados, lá vinham os meus quatro soldados sãos e escorreitos.

O estado de espírito era diferente em cada um deles.

O “Maia”, que propus para um louvor e que era, realmente, o mais corajoso do grupo, mantivera o sangue frio e conseguira descobrir por entre a vegetação um dos “terroristas” que estava a alvejá-los e gritou para o colega, de alcunha o “Alferes”, que estava na linha de tiro e era o mais medroso de todos:”baixa a cabeça “Alferes” e este, que não podia baixar mais a cabeça, gritava com a boca colada ao chão:

-“É pá não me chames alferes que eles matam-me…”

A história do alferes conta-se rapidamente:

Em 1960 os portugueses traziam as diferenças sociais bem evidenciadas no vestir, no falar, na maneira de estar, em suma, na apresentação e este nosso amigo, que era Lisboeta, empregado de uma drogaria, tinha uma figura delicada, pele branca, louro, de olhos verdes nada condizente com a generalidade dos camaradas, provenientes do meio rural, morenos, de tez escura queimada do sol e feições menos delicadas.

Por estas razões puseram-lhe a alcunha de Aspirante que era a patente do oficial que dava a Instrução e como estes, à data de embarque, eram promovidos a Alferes, também a ele o promoveram.

Parece que da emboscada terá resultado, na parte do inimigo, um ferido ou morto pois embora não tivéssemos encontrado nenhum corpo a água do riacho correu tinta de sangue.

Este encontro violento marcou, entre nós e eles, uma espécie de armistício, eles cumpriram a sua obrigação patriótica atacando-nos e nós marcámos a nossa presença defendendo-nos com toda a determinação numa espécie de mensagem de que não estávamos ali para ser mortos e que qualquer outro ataque poderia representar mais baixas para eles.

Mensagem entendida, nem nós alguma vez os perseguimos nem eles nos voltaram a incomodar, numa palavra: tréguas.




























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