terça-feira, outubro 23, 2007

Lembranças da guerra colonial


Lembranças da Guerra Colonial

As guerras têm uma componente humana que não interessa à análise política ou histórica e que na sua quase totalidade se esquece com o desaparecimento dos seus protagonistas ou descendentes quando, por vezes, alguns deles, ainda recordam as histórias da guerra que o pai ou avô contavam.

Esta componente humana determina que cada guerra se desmultiplique em tantas guerras quantos aqueles que nela participaram porque ela constitui uma experiência única, diferente em função da sensibilidade de cada um que a vive ou melhor, lhe sobrevive.

Na manhã do dia 9 de Novembro de 1962 a marginal de Luanda regurgitava com as centenas de militares, mais de mil, que tinham desembarcado do Paquete Vera Cruz.

Três Batalhões, para além de Companhias Independentes, desciam pelo portaló do convés do navio sendo certo que as expressões dos soldados demonstravam mais alívio pelo fim da viagem do que medo daquilo que os esperava.

Eram poucos, aqueles que antes da mobilização tinham saído da sua aldeia natal num Portugal acentuadamente rural e em grande parte analfabeto.

Mas a juventude é uma fonte de vida e de esperança e quem ouvisse o cruzar de tantos gritos e falatório perguntaria, senão soubesse, se eles iam para a guerra ou para uma festa, ou talvez fosse apenas uma maneira de se animarem uns aos outros para não pensarem no destino que os esperava e que eles também não sabiam bem qual era.

Para já, iria ser o Campo do Grafanil, nos subúrbios de Luanda, onde as GMC e as Berliettes, estas construídas na Fábrica do Tramagal, ali para os lados de Abrantes, levariam cada Batalhão ao seu destino sem que antes, porém, nessa noite, exércitos de mosquitos, plenos de energia própria da época das chuvas, não partisse ao assalto dos nossos corpos ávidos de sangue fresco acabado de desembarcar, num primeiro teste de adaptação a esse misterioso continente Africano.

Nós, os Alferes, e aqui ficam os seus nomes no desejo de que todos se encontrem ainda vivos e de saúde, Matos, Ataíde, Rocha, Melo e Dória Nóbrega, tivemos direito a um jantar no Grande Hotel Universo oferecido pelo Capitão, Comandante da Companhia, pessoa que então vimos pela primeira vez e que tinha chegado primeiro que nós a Angola, provavelmente em missão de reconhecimento.

Deixem-me recordar este senhor, de cujo nome não me lembro, porque ele correspondia à regra (haveria excepções) do que eram os capitães milicianos a quem o Exército concedia, face às necessidades, a oportunidade de uma carreira militar depois de falhadas que foram as suas vidas académicas e profissionais.

Apareceu-nos no Hotel numa figura que antecipava aquela que viria a ser a do Rambo, com a faca de mato e granadas penduradas à cintura e um desembaraço que nos impressionou.

Durante a viagem para o Úcua dormitava, ou fingia, ao lado do condutor do jeep numa atitude misto de confiança e displicência própria dos heróis do Western, tipo John Wayne.

Chegados ao Úcua, de noite, decidiu “brindar-nos” com uma volta de reconhecimento à povoação mas fê-lo de forma tão desastrada que senão o tivéssemos agarrado por um braço teria caído do jeep.
Era o homem mais medroso da Companhia e para não ser visado pelo inimigo quando estava no mato em operações, gritava para os soldados: “não me chamem de Capitão, eu sou o 120”e lá ficou, na história da “minha guerra”, com a alcunha do 120.

Tivemos sorte, apesar de tudo, porque dos três Batalhões que viajaram connosco o nosso terá ficado no local menos perigoso pois em quase um ano em que ali estivemos não se registou a explosão de uma única mina nas estradas da nossa área de intervenção.

Mas houve quem pagasse o preço supremo por aquela guerra e eu lembro o meu amigo “Setúbal” que, tal como muitos outros, tinha como alcunha o nome da sua terra, casos do “Tabuaço”, “Chaves”, “Matosinhos”, “Maia”, etc.

Foi o melhor soldado da recruta que dei em Évora, no Regimento de Infantaria 16.

Era casado, tinha a 4ª Classe, uma filha, trabalhava como empregado de mesa, e eu só lhe dava autorização para responder às perguntas quando nenhum dos seus camaradas sabia a resposta.

Era um primor de simpatia, educação e inteligência mas, infelizmente, quando foram divididos pelas três Companhias do Batalhão, ficou na 389 quando a mim me calhou a 388.

Por esta razão fiquei no Úcua e ele foi parar ao Pango Aluquém, cerca de 50 a 60 km para leste.

Creio que foi em Março, eu seguia de jeep do Úcua para o Pango e já relativamente próximo do destino apercebi-me que, na estrada, mais à frente, algo se estava a passar.

Um Unimog, com uma metralhadora Breda para dar protecção a um grupo de trabalhadores que reparavam a estrada, tinha caído numa emboscada montada numa curva e o inimigo, julgando que o meu jeep, que se aproximava em sentido contrário, fazia parte de um reforço de tropas chamado pela rádio para socorrer os camaradas em apuros, fugiram em debandada deixando para trás um cadáver e uma pistola metralhadora.

O meu amigo “Setúbal” e mais cinco colegas estavam mortos. Uma bala disparada a curta distância acertou-lhe a meio da testa…felizmente não sofreu.

Os restantes foram igualmente mortos à queima-roupa com excepção de um que sobreviveu apenas porque se atirou da viatura e fingiu estar morto, deitado de barriga para baixo, no meio do capim.

Essa simulação valeu-lhe a vida e um louvor.

Nem sempre os heróis se fazem de coragem e valentia. Neste caso, a astúcia e o sangue frio mostraram ser decisivos para a sobrevivência.

Com uma perna partida em consequência da queda do Unimog conseguiu manter-se imóvel não obstante as dores que sentia que não eram, no entanto, tão fortes como a sua vontade de se manter vivo.

A chegada inesperada do meu jeep como factor surpresa pôs termo à situação em que, para ele, cada segundo parecia uma eternidade.

A bala que atingiu o “Setúbal” em cheio, na cabeça, perfurou-me, a mim, a alma. A minha tensão arterial baixou para 4/8 e as noites seguintes passei-as junto dos sentinelas, em silêncio, como se cada um deles fosse o meu amigo de quem não me queria separar.

Na verdade, não conseguia dormir, todos nós tínhamos morrido um pouco com os nossos camaradas falecidos.

Este texto é dedicado ao “Setúbal”, um jovem cheio de qualidades, decerto um cidadão exemplar, mais um que aquela guerra privou da vida a que tinha direito subtraindo-o ao seu país, à sua família e a todos nós.

Não vale a pena perder tempo a odiar os culpados tantos foram e são os “senhores das guerras” em todo o mundo. O nosso, caiu de uma cadeira e morreu uns tempos depois…

Prefiro recordar com saudade e amizade o meu amigo “Setúbal” de quem nunca me esqueci ao longo de quarenta e quatro anos!
















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