quinta-feira, outubro 16, 2008


Quando me tornei Invisível...






Já não sei em que data estamos, lá em casa não há calendários e na minha memória as datas estão todas misturadas.

Recordo-me daquelas folhinhas grandes, um primor, ilustradas com imagens dos Santos que colocávamos ao lado do penteador.

Já não há nada disso. Todas as coisas antigas foram desaparecendo e, sem que dessem conta, eu fui-me apagando também.

Primeiro, trocaram-me de quarto pois a família cresceu, depois passaram-me para outro, ainda na companhia das minhas bisnetas e agora ocupo um pequeno espaço numa despensa que está no pátio atrás da casa.

Prometeram-me trocar o vidro quebrado da janela, mas esqueceram-se, e de noite corre por ali um ar frio que aumenta as minhas dores reumáticas.

Mas, tudo bem…

Desde há muito tempo que tinha intenção de escrever porém, passei semanas a procurar um lápis e quando o encontrava, de novo me esquecia onde o tinha posto… na minha idade as coisas perdem-se facilmente.

Claro que não é uma enfermidade delas, das coisas, porque julgo estar segura de tê-las, mas sempre desaparecem.

Há dias dei-me conta que a minha voz também tinha desaparecido porque quando falo com os meus netos ou os meus filhos não me respondem.

Todos falam sem me olharem, como se não estivesse com eles, escutando atenta tudo o que me dizem.

Ás vezes intervenho na conversação, segura de que o que tenho para lhes dizer não ocorreu a nenhum deles e que lhes vai ser de grande utilidade.

Porém, não me ouvem, não me olham, não me respondem e então, cheia de tristeza, retiro-me para o meu quarto e vou beber a minha chávena de café.

E faço assim de propósito, para que compreendam que estou aborrecida, para que se dêem conta que me entristecem, me venham buscar e me peçam perdão…mas ninguém vem.

Quando o meu genro ficou doente, pensei que teria oportunidade de lhe ser útil e levei-lhe um chá especial que eu mesma preparei.

Coloquei-o na mesinha de cabeceira e sentei-me esperando que o tomasse, só que ele estava a ver televisão e nem um só movimento me indicou que se dera conta da minha presença.

O chá, pouco a pouco, foi esfriando e com ele o meu coração.

Então, no outro dia, disse-lhes que quando eu morresse todos se iriam arrepender e o meu neto mais pequeno respondeu: “Ainda estás viva avó” e acharam tanta graça que não pararam de rir.

Estive três dias a chorar no meu quarto, até que numa manhã entrou um dos rapazes para tirar umas rodas e nem o bom dia me deu.

Foi então quando me convenci de que sou invisível…

Parei no meio da sala para ver se tornando-me num estorvo me olhavam, porém a minha filha continuou a varrer sem me tocar e os meninos correram à minha volta, de um lado para o outro, sem tropeçarem em mim.

Um dia, os meninos agitaram-se e vieram dizer-me dizer que no fim-de-semana iríamos todos passar um dia ao campo.

No sábado fui a primeira a levantar-me. Quis arrumar as coisas com calma porque nós, os velhos, levamos muito tempo a fazer as coisas e assim adiantei o meu tempo para não os atrasar.

Rápidos, entravam e saíam da casa a correr levando os sacos e brinquedos para o carro.

Eu já estava pronta e muito alegre e permaneci no meu quarto à espera que me chamassem mas, quando dei conta, já tinham partido e o carro desapareceu envolto em algazarra.

Compreendi que não estava convidada, talvez porque não coubesse no carro, ou porque os meus passos, de tão lentos, impediriam que caminhassem a seu gosto pelo bosque.

Senti, claro, como o meu coração se encolheu e a minha face ficou tremendo como quando a gente tem que engolir a vontade de chorar.

Eu entendo-os, eles vivem no mundo deles, riem, gritam, sonham, choram, abraçam-se, beijam-se…eu nem sinto mais o gosto de um beijo.

Antes beijava os pequeninos, era um prazer enorme tê-los nos meus braços como se fossem meus.

Sentia a sua pele tenrinha e a sua respiração doce bem perto de mim.

A vida nova produzia-me alento e até me dava vontade de cantar canções que já não acreditava lembrar-me delas.

Mas um dia, a minha neta Laura, que acabava de ter um bebé disse-me que não era bom que os velhos beijassem os bebés, por questões de saúde…

Desde então já não me aproximo deles, não quero passar-lhes algum mal por imprudência minha.

Tenho tanto medo de contagiá-los!

Eu os bendigo a todos e lhes perdoo porque:


“ Que culpa tenho eu de me ter tornado invisível?”


(Hamilton Slide)




A Velhice


A velhice não tem que ser, necessariamente, só por ser velhice, algo de dramático mas é verdade que ela, tal como a infância, constitui um período frágil da nossa vida.

Na primeira, porque tudo está ainda em formação, na última porque tudo aquilo que se formou está a chegar ao fim, não que se tenha perdido, ou que tenha sido inútil, ou ainda que não tenha tido proveito para muitos outros mas, de qualquer forma, está a chegar ao fim.

Há que ter consciência de que o facto de termos nascido constituiu um acontecimento raro e extraordinário, uma oportunidade única e irrepetível mas acontecendo, abriu um ciclo e a velhice aponta, irremediavelmente, para o seu fecho.

De todos os seres que já viveram na Terra fomos os únicos privilegiados a terem a consciência de si próprios e da sua própria existência.

Só a nós nos foi facultado o acesso a esse mundo complexo mas maravilhoso dos sentimentos através dos quais conhecemos o amor, o ódio, a paixão, o ciúme, a amizade, o companheirismo e talvez, alguns de nós, tenham sentido, em algum momento, a felicidade.

Viemos do anonimato onde estivemos até nascer e a ele vamos ter que regressar, sem dramas, agradecidos que devíamos estar pela oportunidade da vida que aconteceu connosco.

Com a velhice diminuem as nossas faculdades físicas e intelectuais como se tratasse de um alijar de carga, por desnecessária para a viagem, ou melhor, para o fim da viagem.

Nada se encerra com alegria e daí a nossa fragilidade na fase final do ciclo da nossa vida, compreende-se…

…o que não se compreende é que os nossos “companheiros” que começaram a viagem mais tarde, de inebriados e entusiasmados com a sua própria existência, se permitam ignorar os velhos, “matá-los” em vida, como se a velhice fosse um monopólio exclusivo dos velhos…e todos os que não morrerem antes, não venham, de certeza, a serem velhos também.

A qualidade da relação que se estabelece com eles, quer dentro da família, quer com a sociedade, é um dos factores importantes que define o nosso avanço civilizacional.

Infelizmente, pelo menos entre nós, as famílias parecem ter especiais dificuldades em enquadrar no seu seio os velhos que hoje se amontoam em lares com melhores ou piores condições mas, afastados dos seus familiares, a solidão é um sentimento inevitável.

Depois, temos igualmente, o fosso que se estabeleceu entre as últimas gerações, as dificuldades de compreensão entre os velhos e os jovens de hoje agravada pela crise da autoridade e a perda de respeito pelos mais velhos.

As novas tecnologias que nasceram e se expandiram com os jovens de agora deram lugar a uma nova linguagem que os velhos têm dificuldade de entender e, em geral, já não se sentem com forças para aprenderem.

A indiferença e o ostracismo para com os velhos é um dado cultural relativamente recente e traduz-se, não só numa enorme falta de sensibilidade como, igualmente, numa tremenda injustiça que remete para a consciência de cada um de nós.

Este texto da velhinha que desabafa relativamente às injustiças de que é vítima por parte de todas as pessoas da sua própria família, é bem revelador de que a velhice pode ser, em demasiadas situações, um autêntico drama.


…”Senti, claro, como o meu coração se encolheu e a minha face ficou tremendo como quando a gente tem que engolir a vontade de chorar”…

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