TIETA DO AGRESTE
EPISÓDIO Nº 185
Somente então, deitada ao lado de Felipe no leito colonial da alcova do palacete da família Camargo do Amaral, deu-se conta da exacta significação de sentimento a ligá-la ao milionário comendador do Papa.
Ainda há pouco parecera-lhe absurda aquela ligação na qual interesse, amizade, compreensão, desejo e prazer se misturavam. Sobre os lençóis de cambraia de dona Olívia, entendera, enfim o significado da palavra amor, tão gasta e repetida, tão jogada fora na agonia das paixões e dos rabichos. Amor, sim, singular e exclusivo.
Muitas paixões, tantas, tão diversas. Passageiras ou renitentes, todas impetuosas, possessivas. As de menina moça ávida de homens; abrindo-se nos esconsos do rio, nos altos dos cômoros de Mangue Seco, as de mulher-dama em trânsito do sertão para São Paulo. Durante o tempo longo de Felipe, rapariga às ordens, despesas por conta dele, sua propriedade pessoal, o pijama sob o travesseiro, os chinelos ao pé do leito, repetidas vezes se apaixonara, a cabeça virada, doidinha. Nunca, porém, deixara de ser a terna amante, companheira e amiga do poderoso cinquentão – quando o conheceu, Felipe completara quarenta e nove, aparentava quarenta – a envelhecer nos seus braços.
Desconfiaria Felipe das aventuras da protegida, desvairados xodós? Tieta jamais recebera homem no Nid d’Amour, nem Madame Georgette permitiria tal leviandade, tão pouco no Refúgio dos Lordes, desde o dia que ele comunicara a decisão de mantê-la com exclusividade. Encontrava-se com os eventuais amantes em apartamentos, garçonieres ou em rendevus bem mais modestos. Apesar das precauções tomadas, Felipe, experiente e arguto, devia dar-se conta do fogo a consumi-la, exibindo-se no brilho dos olhos, no nervosismo dos gestos, no assanhamento na cama pois, quanto mais enrabichada por outro, com maior ardor e ofício a ele se entregava como a compensá-lo.
Jamais Felipe demonstrara a menor suspeita. Nos últimos meses, porém, quando os sinais da velhice começaram a lhe marcar a face bem tratada, mais além da fleuma e da sobranceria, Tieta percebera ou pensara perceber uma ponta de tristeza no olhar do Comendador, ao senti-la vibrante e incontida.
Para não magoá-lo cuidou de reservar-se, controlando a ânsia e o apetite. Para não magoá-lo ou porque, de tão presa ao marchante, sentia-se menos necessitada?
Por ocasião da morte de Felipe achou-se tão sozinha e perdida, a ponto de romper a jura feita na hora da partida de Agreste – nunca mais porei os pés aqui – e vir buscar segurança e forças, renovar o gosto de viver no meio da família, no chão onde nascera e se criara, nos outeiros a tanger cabras, aprendendo ser a vida dura prova, nos cômoros de areia fazendo-se mulher sob o peso do mascate com cheiro de alho e cebola. Buscava respiração de ar puro, visão de céu límpido, noite de estrelas inumeráveis, banho de luar.
Fugitiva da poluição de São Paulo, do deprimente comércio do Refúgio, da ausência de Felipe, inútil pijama, abandonados chinelos.
Nessa outra noite de Ano-Novo, tão diversa da última.
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