terça-feira, outubro 27, 2009


TIETA DO
AGRESTE
EPISÓDIO Nº 269




DOS DIAS VENTUROSOS



Os dias que se seguiram ao frustrado domingo da inauguração do Curral do Bode Inácio, à aflita noite dos chifres sagrados, foram os mais felizes das férias de Tieta, dos mais felizes da sua vida.

Ao projectar a volta a Mangue Seco, sonhava reencontrar a beleza e a paz. Sortuda, obteve de lambugem devoradora paixão, insólita em sua farta colheita de xodós. Pela primeira vez deixou de ser sestrosa chiva requestada e conquistada, rendendo-se submissa ao apelo, à cobiça, à sedução do macho.

De súbito, restituída à paisagem da sua adolescência, cabra de pejado úbere, desejou com ânsia irreprimível, seduziu e conquistou cabrito apenas desmamado, derrubando-o nas dunas, violentando-o. Além da paz e da beleza, a timidez e a fúria do mancebo. Como se não bastasse, ainda por cima sobrinho e seminarista. Louca, absurda, incomparável aventura, disputando com Deus os preciosos minutos.

Dias de plenitude, de paixão decantada em amor único e imortal, quando a existência se faz inconcebível sem a presença do ser amado, seriam perfeitos se não estivessem a chegar ao fim. Ocorre a tentação de levar Ricardo para São Paulo. Sabe que não pode nem deve fazê-lo: mais cedo ou mais tarde a magia se romperá projectando no desejo a sombra do fastio e do tédio. Por isso mesmo, não admite perder nem um instante da ventura sem par desse amor enquanto imenso e eterno. Proibidas as idas a Agreste, suspensos os encargos do coroinha, as obrigações do levita do Templo, o seminarista despiu a batina, exibe-se quase nu na sunga de banho.

Tieta não cogita cumprir as promessas feitas a dona Carmosina e ao Comandante, disposta a permanecer em Mangue Seco até ao dia da festa da luz, véspera de embarque. Na festa se despedirá de todo o mundo, adeus minha gente, até outra vez, levo saudades, foi bom demais.

Não vê motivo para sacrificar-se. Nada pode fazer de válido para impedir a instalação da fábrica, sua presença em Agreste não passará de tempo e esforços perdidos, inúteis. Alegre e livre, vive dias incomparáveis, prosando com Pedro e Marta, com Jonas e os pescadores. Gemendo e rindo nos braços de Ricardo, no alto das dunas, na fímbria do mar, na rede, na cama, na areia, na espuma das ondas, no casco da canoa, de noite, de madrugada, ao cair da tarde, na barra da manhã. A lua crescente finca-se nos cômoros, entra pela janela do Curral.

Bom seria ficar para sempre, ali envelhecer e esperar a morte, sem preocupações nem compromissos. Por que há de abandonar o paraíso? Urge regressar a São Paulo, reassumir a direcção do Refúgio, ganhar dinheiro e empregá-lo bem. Ademais, dentro de muito pouco tempo, Mangue Seco será apenas triste e podre paisagem de cimento, fumaça e detritos. Melhor não pensar nisso, aproveitar enquanto ainda existem paz, beleza, amor.

A plenitude dura desde a manhã de segunda-feira, quando por fim Ricardo chegou e Tieta o recebeu com quadro pedras na mão:

- Se fez de propósito para aguar minha festa, conseguiu. Por que não ficou de vez?

- Mas a tia disse que não ia haver mais festa.

- Desde quando sou de novo tia? Estamos cercados de gente por acaso?

- Desculpe, mas nunca lhe vi tão zangada assim. Padre Mariano me prendeu por causa do inventário. O Cardeal…

- Quero que o Cardeal se vá estourar no inferno. Ele, o padre e toda e sua laia. A que horas terminou esse tal de inventário?

- Em cima da bênção.

- E por que você ficou por lá, não veio ontem mesmo?

- Quando a bênção acabou era de noite, não me ocorreu – o que lhe não ocorre é uma boa desculpa – comi, rezei o terço com a mãe, fui deitar. Sonhei… - levanta os olhos para Tieta: - … sonhei com você a noite inteira. Cada sonho!

Justamente por ele não ter dado uma desculpa, Tieta acreditou:

- Se me fizer outra dessas, você vai ver. De agora em diante tu não sais mais daqui nem pra mim nem pra porcaria nenhuma. Até eu ir embora, Deus se acabou – a voz se adoça: - Tu sonhou mesmo comigo?

- Sonhei com você mocinha, mais moça do que eu, antes de ir embora. Igualzinha como você me contou, igualzinha, sem tirar nem pôr, meninota – Não era por acaso verdade? Faltava a Maria Imaculada apenas o cajado de pastora.

- Me conte, cabrito, tintim por tintim.

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