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DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS
Diante de tão súbita morte, dona Gisa não pensava em Vadinho senão com saudade: era-lhe simpático, apesar de tudo; possuía um lado gentil e cativante.
Nem por isso, no entanto, nem por ele encontrar-se ali, no Largo Dois de Julho, morto, estendido na rua, vestido de baiana, iria ela de repente santificá-lo, torcer a realidade, inventar outro Vadinho feito de um só pedaço. Assim explicou a dona Norma, sua vizinha e íntima, mas não obteve da parceira o esperado apoio.
Dona Norma dissera muitas vezes as últimas de Vadinho, brigava com ele, pregava-lhe sermões monumentais, chegara um dia a ameaçá-lo com a polícia.
Naquela hora derradeira e aflita, porém, não desejava comentar as predominantes e desagradáveis facetas do finado, queria apenas gabar os seus lados bons, sua gentileza natural, sua solidariedade sempre pronta a manifestar-se, sua lealdade para com os amigos, sua indiscutível generosidade (sobretudo se a praticava com o dinheiro alheio), sua irresponsável e infinita alegria de viver. Aliás, tão ocupada em acompanhar e socorrer dona Flor, nem tinha ouvidos para dona Gisa com sua dura verdade.
Dona Gisa era assim: a verdade acima de tudo, por vezes a ponto de fazê-la parecer áspera e inflexível; talvez numa atitude de defesa contra a sua boa fé, pois era crédula ao absurdo e confiava em todo o mundo. Não, não relembrava os malfeitos de Vadinho para criticá-lo ou condená-lo, gostava dele e com frequência perdiam-se os dois em longas prosas, dona Gisa interessada em aprender a psicologia do submundo onde Vadinho se movimentava, ele a contar-lhe casos e a espiar-lhe no decote do vestido o nascer dos seios pujantes e sardentos. Talvez dona Gisa o entendesse melhor que dona Norma, mas, ao contrário da outra, não lhe descontava sequer um defeito, não ia mentir só porque ele morrera. Nem a si própria dona Gisa mentia, a não ser quando isso se fazia indispensável. E não era o caso, evidentemente.
Dona Flor atravessava o povo no rasto de dona Norma a abrir caminho com os cotovelos e com sua extrema popularidade:
- Vai, arreda mina gente, deixa a pobre passar…
Lá estava Vadinho no chão de paralelepípedos, a boca sorrindo, todo branco e loiro, todo cheio de paz e inocência.
Dona Flor ficou um instante parada, a contemplá-lo como se demorasse a reconhecer o marido ou talvez, mais provavelmente, a aceitar o facto, agora indiscutível, de sua morte.
Mas foi só um instante. Com um berro arrancado do fundo das entranhas, atirou-se sobre Vadinho, agarrou-se ao corpo imóvel, a beijar-lhe os cabelos, o rosto pintado de carmim, os olhos abertos, o atrevido bigode, a boca morta, para sempre morta.
E SEUS DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº4
Diante de tão súbita morte, dona Gisa não pensava em Vadinho senão com saudade: era-lhe simpático, apesar de tudo; possuía um lado gentil e cativante.
Nem por isso, no entanto, nem por ele encontrar-se ali, no Largo Dois de Julho, morto, estendido na rua, vestido de baiana, iria ela de repente santificá-lo, torcer a realidade, inventar outro Vadinho feito de um só pedaço. Assim explicou a dona Norma, sua vizinha e íntima, mas não obteve da parceira o esperado apoio.
Dona Norma dissera muitas vezes as últimas de Vadinho, brigava com ele, pregava-lhe sermões monumentais, chegara um dia a ameaçá-lo com a polícia.
Naquela hora derradeira e aflita, porém, não desejava comentar as predominantes e desagradáveis facetas do finado, queria apenas gabar os seus lados bons, sua gentileza natural, sua solidariedade sempre pronta a manifestar-se, sua lealdade para com os amigos, sua indiscutível generosidade (sobretudo se a praticava com o dinheiro alheio), sua irresponsável e infinita alegria de viver. Aliás, tão ocupada em acompanhar e socorrer dona Flor, nem tinha ouvidos para dona Gisa com sua dura verdade.
Dona Gisa era assim: a verdade acima de tudo, por vezes a ponto de fazê-la parecer áspera e inflexível; talvez numa atitude de defesa contra a sua boa fé, pois era crédula ao absurdo e confiava em todo o mundo. Não, não relembrava os malfeitos de Vadinho para criticá-lo ou condená-lo, gostava dele e com frequência perdiam-se os dois em longas prosas, dona Gisa interessada em aprender a psicologia do submundo onde Vadinho se movimentava, ele a contar-lhe casos e a espiar-lhe no decote do vestido o nascer dos seios pujantes e sardentos. Talvez dona Gisa o entendesse melhor que dona Norma, mas, ao contrário da outra, não lhe descontava sequer um defeito, não ia mentir só porque ele morrera. Nem a si própria dona Gisa mentia, a não ser quando isso se fazia indispensável. E não era o caso, evidentemente.
Dona Flor atravessava o povo no rasto de dona Norma a abrir caminho com os cotovelos e com sua extrema popularidade:
- Vai, arreda mina gente, deixa a pobre passar…
Lá estava Vadinho no chão de paralelepípedos, a boca sorrindo, todo branco e loiro, todo cheio de paz e inocência.
Dona Flor ficou um instante parada, a contemplá-lo como se demorasse a reconhecer o marido ou talvez, mais provavelmente, a aceitar o facto, agora indiscutível, de sua morte.
Mas foi só um instante. Com um berro arrancado do fundo das entranhas, atirou-se sobre Vadinho, agarrou-se ao corpo imóvel, a beijar-lhe os cabelos, o rosto pintado de carmim, os olhos abertos, o atrevido bigode, a boca morta, para sempre morta.
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