sábado, dezembro 26, 2009


DONA FLOR


E SEUS DOIS


MARIDOS

EPISÓDIO Nº 3


Dona Flor, precedida é claro, por dona Norma a dar ordens e a abrir caminho, chegou quase ao mesmo tempo que a polícia. Quando despontou na esquina, apoiada nos braços solidários das comadres, todos adivinharam a viúva, pois vinha suspirando e gemendo, sem tentar controlar os soluços, num pranto desfeito. Ao demais, trajava o robe caseiro e bastante usado com que cuidava do asseio do lar, calçava chinelas cara-de-gato e ainda estava despenteada.

Mesmo assim era bonita, agradável de ver-se; pequena e rechonchuda, de uma gordura sem banhas, a voz bronzeada de cabo-verde, os lisos cabelos tão negros a ponto de parecerem azulados, olhos de requebro e os lábios grossos um tanto abertos sobre os dentes alvos. Apetitosa, como costumava classificá-la o próprio Vadinho em seus dias de ternura, raros talvez porém inesquecíveis.

Quem sabe, devido às actividades culinárias da esposa, nesses idílios Vadinho dizia-lhe “meu manué de milho verde, acarajé cheiroso, minha franguinha gorda”, e tais comparações gastronómicas davam justa ideia de certo encanto sensual e caseiro de dona Flor a esconder-se sobre uma natureza tranquila e dócil. Vadinho conhecia-lhe as fraquezas e as expunha ao sol, aquela ânsia controlada de tímida, aquele recatado desejo fazendo-se violência e mesmo incontinência ao libertar-se na cama.

Quando Vadinho estava de veia, não existia ninguém mais encantador e nenhuma mulher sabia resistir-lhe. Dona Flor jamais conseguira recusar-se ao seu fascínio nem mesmo a tanto se dispunha cheia de indignação e raiva recentes. Pois, em repetidas ocasiões, chegara a odiá-lo e a arrenegar o dia em que unira a sua sorte à do boémio.

Mas andando agoniada, ao encontro da intempestiva morte de Vadinho, dona flor ia zonza, vazia de pensamentos, de nada se recordava, nem dos momentos de densa ternura, menos ainda dos dias cruéis, de angústia e solidão como se ao expirar ficasse o marido despojado de todos os defeitos ou como se não os houvesse possuído em sua “breve passagem por este vale de lágrimas”.

Foi “breve sua passagem por este vale de lágrimas” pronunciou o respeitável professor Epaminondas Sousa Pinto afectado e afobado, tentando cumprimentar a viúva, dar-lhe os pêsames, antes mesmo dela chegar junto ao corpo do marido. Dona Gisa, também professora e até certo ponto também respeitável, conteve o açodamento do colega e conteve o riso. Se em verdade fora breve a passagem de Vadinho pela vida – vinha de completar trinta e um anos – para ele dona Gisa bem o sabia, não fora o mundo vale de lágrimas e, sim, palco de farsas, engodos, embustes e pecados, alguns deles aflitos e confusos, sem dúvida, submetendo seu coração a árduas provas, a agonias e a sobressaltos: dívidas a pagar, promissórias a descontar, avalistas a convencer, compromissos assumidos, prazos improrrogáveis, protestos e cartórios, bancos e agiotas, caras amarradas, amigos esquivando-se sem falar nos sofrimentos físicos e morais de dona Flor. Porque, considerava dona Gisa em seu português arrevesado – era vagamente norte americana, naturalizara-se e se sentia brasileira mas o diabo da língua, ah!, não conseguia dominá-la – se houvera lágrimas na breve passagem de Vadinho pela vida, elas tinham sido choradas por dona Flor e foram muitas, davam de sobra para o casal.

Site Meter