sábado, dezembro 05, 2009


TIETA DO
AGRESTE


EPISÓDIO Nº 297


DA ALPARCATA DO CÂO, LÍNGUA E OLHO DA CIDADE



Na barra da manhã, Bafo de Bode abre os olhos na sarjeta onde a cachaça o derrubara na noite anterior. Sarjeta é força de expressão folhetinesca – adormecera na porta do Cine Tupy, abrigado contra o vento e a chuva. Levantando-se toma o caminho do Buraco Fundo. Ao atravessar a Praça da Matriz, percebe movimento na porta de Terto. Detém-se para identificar o apressado a partir tão cedo quando pode demorar-se, tranquilo – Terto, o dedicado marido, adora dormir até bem tarde, na rede pendurada no alpendre, o sono pesado e plácido dos bons cabrões, satisfeitos de seu estado (aqueles que assumem, como escreveria um jovem autor moderno).

Ao encontrá-lo andejo em ronda pelas ruas e becos da cidade, em horas tardas, tudo vendo e comentando, Amélia Dantas (actualmente Regis) de apelido Mel, ex-primeira Dama do Município, classificara o mendigo de alpargata do cão. Segundo Barbozinha, Bafo de Bode é o olho da cidade. O olho do cu acrescenta Aminthas. Tanta coisa viu, nada mais o espanta. Não pode, porém, esconder o pasmo ao reconhecer no cidadão metido num velho par de calças de Terto o seminarista Ricardo. Em camisola, pendurada ao pescoço do rapaz. Em camisola, pendurada ao pescoço do rapaz dona Edna se despede num chupão daqueles. As calças de Terto, apertadíssimas, vão-lhe mal, por que o padreca as usa? Trajava batina quando Bafo de Bode o surpreendera acompanhado da meninota, inquilina da Zuleika, para os barrancos do rio. Vestia calção e camisa-esporte ao atravessar a proibida porta de Carol, não se haviam passado quatro dias. De batina o avistara ainda na véspera galgando os degraus da torre para consolar a indócil vitalina. Sem falar…Cala-te boca.

Retomando a marcha, corifeu da cidade, Bafo de Bode revela e aconselha:

- Gentes, vamos pôr o cu no seguro que a Pomba do Divino está solta em Agreste!



DA PASTORA E DO BODE NOVO



Ricardo cruza o jardim da Praça, as calças justas não lhe permitem correr. Bate na porta do fundo, Araci abre, espoca em riso: seu Cardo está tão engraçado, ai que moço mais bonito! Um dia há-de reparar nela, se Deus quiser.

Entra, veste a batina, está terminando de arrumar a mala quando sente que alguém o observa, levanta a vista. Nos trajes negros, o terço na mão, Perpétua, preparada para ir à igreja. Ameaçadora, pronta para a acusação e o castigo, no rosto a indignação e a repulsa, os olhos fuzilando, a voz terrível – mas contida para não acordar as duas amaldiçoadas:

- O que está fazendo, excomungado?

- Vou tomar a marinete para Esplanada daqui a pouco.

- Tomar a marinete? Com ordem de quem?

- De ninguém, Mãe. Em Esplanada tomo o ônibus para Aracaju, salto na estrada para São Cristóvão.

- O que é que tu está pensando? Não tem mais mãe a quem obedecer? Ficou maior de idade? Trate de guardar suas coisas e ir se deitar. Mais tarde, vai me prestar contas, se prepare.

- Vou passar uns dias com Frei Timóteo, no convento. Ele me convidou. Depois que Tieta… que a tia viajar, eu volto.

- Não vai para lugar nenhum. Faça o que eu lhe disse.

Sabe que não vai ser obedecida, que nunca mais mandará nele. Irmã mais velha, jamais mandou em Tieta, jamais foi por ela obedecida.

- Já disse, Mãe, que vou para São Cristóvão. Não fiquei maior de idade, fiquei homem, não vê? Não tente me impedir, não quero sair fugindo. Eu volto, fique descansada.

- Tu nem parece mais meu filho. Tu estás igual a ela. Era a nossa vergonha: de dia com as cabras, de noite no pecado. Tu quer tomar o lugar dela. Tu não tem medo do castigo de Deus?

Desde a morte do major, sente, pela primeira vez vontade de chorar.

- Meu Deus mudou também, Mãe, não é mais semelhante ao seu. Meu Deus perdoa, não castiga.

- Mas tu não pode ir embora assim, antes de se acertar tudo. Ela te desviou do bom caminho, te perverteu, pôs minha promessa a perder. Tem de compensar o mal que praticou. Trouxe o pecado para esta casa, te desgraçou, a maldita.

- Não, Mãe. Eu era cego, ela me ajudou a enxergar. Não sei se vou ser padre ou não, ainda é cedo para saber. Mas fique certa de que se eu não me ordenar é porque Deus não quis. Quando eu souber, lhe digo. Mas vou continuar a estudar, não tenha medo.

- Tu jura que é mesmo para o convento que tu vai?

- Já lhe disse. Agora, ouça, Mãe: a tia foi boa demais para comigo. Nunca poderei pagar o que devo a ela.

Toma da mala, sorri para a mãe, sereno e terno:

- A bênção, Mãe.

- Ai, meu Deus! – a mártir eleva os olhos para o céu.

Ao voltar-se em direcção à saída, Ricardo vê Tieta na porta da alcova, o corpo bem-amado vestido com uma réstia de luz da manhã recente.

Adeus, tia…Tieta!

- Adeus, Cardo. Pode me chamar de tia. Diga ao Frade que estou em Agreste, que vai ser uma briga de foice.

A porta da rua se fecha sobre Ricardo. Sem sequer olhar para a irmã, Tieta reentra no quarto. Pastora de cabras, sente orgulho no sobrinho. Igual a ela, sem tirar nem pôr, Perpétua tem razão. Bode novo, sem peias, livre nos outeiros, de cabeça erguida, herdeiro de sua rebeldia. O que passou, passou, capricho louco, fica a saudade, tanta!

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