quarta-feira, janeiro 27, 2010


DONA
FLOR
E
SEUS DOIS
MARIDOS

EPISÓDIO Nº 29


Durante o namoro e o noivado, dona Rozilda mostrou-se tão amável quanto lhe era possível, escondeu as saliências mais ásperas da sua natureza. Necessitava casar as filhas, Rosália chegara ao limite de idade; sobravam moças em busca de marido, minguavam rapazes dispostos ao matrimónio. Árdua batalha, essa de casar filhas, dona Rozilda bem o sabia. Suas conhecidas, quase todas, consideravam o mecânico um bom partido. Uma delas, inclusivé, uma dona Elvira, mãe de três encardidas e remelentas donzelas, destinadas ao definitivo celibato, pusera as três bruacas a cercarem o pretendente, desfeitas em sorrisos e olhares prometedores, só faltava arrastá-lo para a cama, lambisgóias desenxavidas e audaciosas. Ao demais, era Morais trabalhador e morigerado, não seria difícil à sogra comandá-lo, dirigi-lo à sua vontade, após o casamento. Nisso se enganou, o genro iria surpreendê-la.

Assim, a completa verdade Rozilda, o artesão só a veio a conhecer depois de casado. Haviam decidido habitar todos no primeiro andar da Ladeira do Alvo, solução económica e sentimental, pois gastariam menos e continuariam juntos, e outra coisa não demonstravam querer Morais e dona Rozilda senão continuarem para sempre juntos. Rosália resistira a esses planos temerários, “quem casa quer casa”, recordava ela, mas como fazer frente a essa lua-de-mel da mãe e do noivo?

Não durou seis meses a lua-de-mel, desfez-se a combinação, pois como informou o genro aos conhecidos: “Só Cristo aguentaria morar com dona Rozilda e ainda assim não era certeza, precisava experimentar para ver se o Nazareno tinha bastante competência. Pois talvez nem ele suportasse.”

Mudaram-se para o fim do mundo do Cabula, quase zona rural. Morais preferia enfrentar aquele bonde comprido e lento, viagem de nunca acabar, descarrilhando a toda a hora, atrasado para sempre; preferia sair pela madrugada para chegar a tempo na oficina situada nas imediações da Ladeira dos Galés; meter-se naqueles matos esconsos onde sibilavam venenosas cobras-cascavéis e onde os exus de muitos candomblés da redondeza andavam soltos pelos caminhos fazendo misérias, a tolerar o convívio quotidiano da sogra. Antes as cascavéis e os exus.

No primeiro andar da Ladeira do Alvo ficaram apenas Flor adolescente, apurando em moça bonita – delicado rosto, seios altos e altaneiras ancas – e dona Rozilda, uma dona Rozilda cada vez mais agre, limitada agora às graças e às prendas daquela filha, seus derradeiros trunfos na batalha pela ascensão social, batalha tantas vezes perdida.

Não perdera, no entanto, sua resistência, não se abalara sua firme vontade de subir, de galgar os degraus a conduzi-la ao mundo dos ricos. Nas suas noites fatigadas de insónia (dormia pouco, ficava a ruminar projectos) decidira não entregar a caçula a nenhum outro Morais. Destinava Flor a melhor partido, a rapaz de qualidade, a branco fino, a doutor formado ou a comerciante forte.

Defenderia com unhas e dentes aquela última trincheira, não se repetiria o que acontecera com Rosália. Não só Flor era muito mais dócil e cordata como não receava ficar solteirona, não tinha conversa de casamento, não se levantava contra a mãe quando esta a proibia de engraçar-se com empregadinhos de escritório, caixeiros de armarinho, galegos de balcão de padaria. Obedecia sem resmungos, não se revoltava aos berros, não se trancava no quarto ameaçando suicídio, num calundu daqueles, como fazia Rosália quando dona Rozilda, zelosa de seu futuro, lhe interditava qualquer reles namorico.

Resultado: casara com aquele mequetrefe do Morais, um zé-ninguém, nem sequer caixeiro, um simples artesão, um operário, que horror! Socialmente ainda menos importante do que elas. Podia ser um colosso no trabalho, podia ganhar dinheiro, ser bom marido, alegre camarada: a verdade, porém, é que a filha em vez de subir descera na escala social; assim, pelo menos, amargava dona Rozilda, destinada a outras alturas. Com Flor era diferente, não iria repetir-se o equívoco.

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