quinta-feira, janeiro 28, 2010


DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS


EPISÓDIO Nº 30


Enquanto dona Rozilda forjava planos, Flor fazia-se conhecida professora de culinária, especialmente de cozinha baiana. Nascera com o dom dos temperos, desde menina às voltas com receitas e molhos, aprendendo quitutes, gastando sal e açúcar. De há muito recebia encomenda de pratos baianos, constantemente chamada a ajudar em vatapás e efós, em moquecas e xinxins, inclusivé em famosos carurus de Cosme e Damião como o da casa de sua tia Lita e de dona Dorothy Alves, onde se reuniam dezenas de convidados e ainda sobrava comida para outros tantos. Carurus anuais, promessas feitas aos santos mabaças, aos ibejes. Com o tempo o seu nome foi-se espalhando, vinham lhe pedir receitas, levavam-na a casa de gente rica para ensinar o ponto e o tempero desse e daquele prato mais difícil. Dona Detinha Falcão, dona Lígia Oliva, dona Laurita Tavares, dona Ivany Silveira, outras senhoras “de representação”, de cuja amizade tanto se gabava dona Rozilda, recomendavam-na a amigas, Flor não tinha mãos a medir.

Foi uma dessas senhoras esnobes e endinheiradas quem lhe deu a ideia da escola, pois, tendo-lhe pedido receitas teóricas e demonstrações práticas, fez questão, ao pagar-lhe o trabalho, de estar remunerando a óptima professora e boa amiga, e não gratificando uma cozinheira. Subtilezas gentis de dona Luísa Silveira, sergipana fidalga toda cheia de astúcias e não-me-toques.

A sério, com escola montada, Flor só começou a leccionar depois da partida de Rosália e Morais para o Rio de Janeiro. O mecânico concluiu não ser suficiente a distância entre os altos do Cabula e a Ladeira do Alvo, quis colocar entre sua casa e a sogra o próprio mar oceano, tomara sagrada aversão a dona Rozilda, a megera, como dizia: “aquilo é peste, fome e guerra!”

Logo prosperou a escola, até senhoras do Canela e do Garcia, mesmo da Barra, vieram desvendar os mistérios do azeite doce e do azeite de dendê; uma das primeiras foi dona Maga Paternostro, ricaça cheia de relações, entusiástica propagandista dos dotes de Flor.

O tempo foi passando, corriam os anos, Flor não tinha pressa em arranjar noivo, agora era dona Rozilda quem começava a preocupar-se, afinal a filha caçula já não era menina. Flor encolhia os ombros, interessada apenas na escola. O irmão, numa das suas vindas de Nazareth, desenhara um cartaz com tinta de cor – elogiavam muito o seu jeito para o desenho – pendurara sob a sacada:



ESCOLA DE CULINÁRIA SABOR E ARTE


Heitor lera nos jornais extenso noticiário sobre uma escola Sabor e Arte, experiência de um fulano vindo dos Estados Unidos, um tal Anísio Teixeira. Com uma mudança de uma letra no título em moda, adaptou-o aos interesses da irmã. Ao lado das letras caprichadas, colher, garfo e faca, cruzados em gracioso tripé, completavam a obra do artista (se fosse hoje já podia Heitor ir pensando numa exposição individual e na venda de uns quadros a bom preço, mas era naqueles tempos, e o funcionário da ferrovia contentou-se com os elogios da irmã, da mãe e de certa aluna de Flor, uma de olhos molhados, que atendia por Celeste).

As aulas de culinária davam o necessário para o sustento da casa, as parcas despesas de mãe e filha, e também para guardar algum dinheiro, tendo em vista os gastos de um futuro matrimónio. Mas, sobretudo, enchiam o tempo de Flor, libertavam-na um pouco de dona Rozilda a repetir-lhe quanto sacrifício lhe custara criar e educar os filhos, criar e educar aquela filha caçula, e de como lhe era necessário encontrar marido rico que as arrancasse dali, da Ladeira do Alvo e do fogão,
para as
delícias da Barra, da Graça, da Vitória.

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