terça-feira, abril 13, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

EPISÓDIO Nº 92


Sem ele não sabe viver, não pode viver. Como acostumar-se, se outra é a luz do dia envolto em cinza, num crepúsculo metálico onde vivos e mortos se confundem nas mesmas lembranças. Tantas imagens e figuras em derredor de Vadinho, tanto riso e tanto choro, um bulício, um calor, o tilintar das fichas e a voz do crupiê. Só no fundo da memória a vida se afirma, plena com a luz da manhã e as estrelas nocturnas; afirma-se vitoriosa sobre esse crepúsculo em coma, no estertor da morte.

Insone no leito de ferro, no abandono e na ausência, dona Flor parte na rota do acontecido, portos de bonança, mar de tempestades. Reúne momentos esparsos, nomes, palavras, o som de uma breve melodia.

Deseja romper a cintura de aço desse crepúsculo, mais além estão o dia de trabalho e a noite de descanso, a vida de viver. Não esse viver num tempo gris de nojo, não esse vegetar num asfixiante pântano de lama, essa sua vida sem Vadinho. Como sair desse óvulo de morte, como atravessar a porta estreita desse tempo nu? Sem ele não sabe viver…

Por vezes Vadinho fora tão ruim como decretavam as comadres, dona Rozilda, dona Dinorá, as demais carpideiras. Em outras ocasiões, porém, faziam-lhe injustiças, acusando-o sem motivo. Ela própria, dona Flor, assim agira por mais de uma vez.

Um dia, por exemplo, ele viajara às pressas, dona Flor soubera no último momento e imaginou o pior, considerando-o perdido para sempre. Não acreditava fosse ele regressar do Rio de Janeiro, com suas luzes feéricas, suas avenidas fervilhantes, os casinos, centenas de mulheres à disposição. Quantas vezes não ouvira Vadinho proclamar: “um dia me toco para o Rio, lá é que é vida, nunca mais volto…?”

Pura maluquice, aquela viagem. Necessitando de numerário, Mirandão inventara uma caravana de estudantes de agronomia com o fim de “visitar os centros de estudo do Rio de Janeiro” durante as férias. Percorreu o comércio em companhia de cinco colegas, tomando dinheiro de meio mundo com um Livro de Ouro. Foram mordidos banqueiros, industriais empresários, lojistas, comerciantes os mais diversos, políticos do governo e da oposição. Ao fim de alguns dias haviam conseguido considerável maquia e criado um problema: nas cortesias aos políticos, por três vezes, em sinceros preitos de homenagem, mudaram o nome da Embaixada. Dos três nomes ilustres, por qual agora optar? Mirandão propunha uma solução extremamente simples: dividir entre eles o dinheiro recolhido e dissolver a caravana ali mesmo dando os Centros de Estudo por visitados. Mas os cinco colegas, unânimes, discordaram: queriam fazer a viagem, conhecer o Rio (dispondo-se, inclusivé, se houvesse ocasião propícia, a visitar a Escola de Agronomia, percorrer-lhe as dependências).

Obtidas passagens de favor, requisitadas pela Secretaria de Agricultura do Estado – pela quarta vez a caravana mudava de nome em honra ao generoso Secretário de Estado – no dia do embarque, quase na hora do navio partir, houve uma defecção, um dos seis picaretas tremia de febre palustre, o médico proibira-lhe a viagem, quando já não tinham tempo de convidar outro estudante para a vaga, nem de vender a baixo preço a passagem inútil.

Vadinho acompanhara Mirandão ao cais, ouvia a discussão. Foi quando o outro lhe perguntou de repente:

- Por que você não vem, não aproveita a passagem?

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