terça-feira, abril 27, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 104




Atirou o dinheiro na cara do alfaiate, deu-lhe as costas enquanto o outro, apalermado, recolhia as notas pelo chão, por entre a vaia das mulheres.

Era um fidalgo, esse Arigof, de roupas e de maneiras, e como bom fidalgo outra coisa não fizera na vida senão jogar; pobre como Jó, negro retinto, mestre capoeirista, de entrada proibida no Pálace Hotel, onde certa feita dera alteração das maiores, quando um gracioso filhinho-de-papai de uísque racista, ao ver o negro Arigof impecável, todo de branco, riu para a sua roda e disse: “olha o macaco que fugiu do circo”. Ficou o salão em pandarecos e o sacana farrombeiro exibe até hoje uma flor aberta na face a traço de navalha.

O sucesso dos dois amigos foi motivo de ceia comemorativa, sobre a presidência ilustre de Chimbo. Compuseram a mesa Mirandão, Robato Anacreon, Pé de Jegue, o arquitecto Lev Língua de Prata, os jornalistas Curvelo e João Batista, o bacharel Tibúrcio Barreiros, além dos anfitriões e de um distinto ramalhete de mundanas e, digamos, de artistas, satisfazendo assim a vontade das irmãs Catunda, ciosas de sua arte e escol da brilhante sociedade reunida no castelo da gorda Carla. Essas irmãs Catunda, “artistas de talento polimorfo”, segundo escreveu em O Imparcial o foliculário Batista, eram três espoletas, filhas da mesma mãe Jacinta Apanha-o-Bago e de pais diferentes. A mais velha, quase negra, a mais nova quase branca, a do meio um amor de mulatinha, de comum só possuíam a progenitora e a desafinação. Fracas no gorjeio mas óptimas na cama, onde realmente polimorfas, segundo depoimento do mesmo João Batista cujo salário no jornal e uns cobres cavados aqui e ali eram gastos com as empreendedoras irmãs; conhecendo o trio, uma a uma, ainda não decidira o redactor qual a mais perita e politécnica. A do meio, Zilda, tinha um fraco por Vadinho.

Lev Língua de Prata e o advogado haviam querido levar The Honolulu’s Sisters para abrilhantar ainda mais a ceia. Sem resultado. Essas Sisters não eram irmãs sequer de mãe, não vinham tão pouco de Honolulu; duas negras norte-americanas, foscas na cor mas de plástica perfeita; frágil corça a meiga Jô destra pantera a musculosa Mô. De comum, além dos corpos sem jaca, tinham a voz agradável e o estranho comportamento: não aceitavam convites para passeios, jantares, serenatas, banhos de mar em Itapoâ, luar na Lagoa de Abaeté, nem para sentar e beber em mesa de freguês algum. Nem o banqueiro Fernando Góes, alto, bonito, elegante, solteirão, farto de dinheiro, as mulheres rojando-se a seus pés, nem ele as obteve; no entanto fora ao Pálace só para vê-las e estourara champanhe francês. Jô e Mô cantavam spirituals e música de jazz até à hora de entrar em cena, dançavam com seios e bundas à mostra mas permaneciam juntas e sozinhas até à hora de entrar em cena, semi-escondidas numa discreta mesa de canto, de mãos-dadas, sorvendo drinques no mesmo cálice. Depois do número subiam para o quarto, não queriam conversa com ninguém.

Foi grandiosa a ceia, com vinhos e champanhe, as Irmãs Catunda no máximo dos seus dotes artísticos, uma euforia geral, à excepção do jovem bacharel Barreiros ainda aporrinhado com a recusa das americanas, “machonas mais escrotas”, bebendo com raiva, indiferente aos gorjeios da gorda Carla a lhe propor consolo e poesia. Na hora da conta, Arigof quase briga com Vadinho ao negar-lhe o direito a contribuir, mesmo com parcela meramente simbólica para o pagamento da despesa. O negro, ainda com o demónio no corpo, declarou considerar grave insulto à sua honra qualquer proposta de cooperação financeira.

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