terça-feira, junho 15, 2010

DONA FLOR

E SEUS DOIS

MARIDOS


EPISÓDIO Nº 146


Perdera “o perfeito equilíbrio entre a mente e o corpo”, necessário a uma vida sadia, no erudito dizer da brochura ioga, “o justo acordo entre o espírito e a matéria”. Matéria e espírito em guerra sem quartel: por fora viúva exemplar em sua honra; por dentro em fogo a arder e a consumir-se.

A princípio apenas de quando em vez e só pela noite, sonho de lascivas imagens a levava para um mundo interdito às virgens e às viúvas, a sacudi-la em seus alicerces de mulher, a lhe despertar instinto e ânsia. Acordava num esforço, punha a mão no peito, a boca seca. Tinha medo de dormir.

Durante o dia, nas tarefas da escola, na leitura de romances, à escuta no rádio, distraindo-se com tanta ocupação, era mais ou menos fácil manter-se à parte de qualquer mau pensamento, abalar os latidos de seu peito. Mas como conter-se e comedir nas noites sem defesa, ao sabor dos sonhos sem controle?

Com o correr do tempo, porém, mesmo durante o dia começou dona Flor a entregar-se a estranhos devaneios, cismarenta e melancólica, em ais de desconsolo. O perigo era ficar a sós, logo invadida por uma corte de lembranças, inclusivé as mais líricas e inocentes a conduzirem ao leito de ferro e fogo, em anseio e oferta. E seu recato de viúva?

Ultimamente dera para imaginar cenas inteiras, misturando pedaços de romances com factos lidos nos jornais ou com as histórias das comadres, com recordações de sua vida de casada. No hálito do Príncipe queimando seu cangote no cinema, entrara-lhe corpo a dentro o sopro do desejo; entrara-lhe pelo sangue e a expunha às penas do impossível pior que as do “dantesco inferno” da literatice yoga.

A partir de certo momento teve de abandonar, por excitante, a leitura dos tolos romances para moças, alimento espiritual da jovem Marilda a suspirar com condessas e duques, no langor tropical da espreguiçadeira. Pois bem: dona Flor descobria malícia nas páginas mais ingénuas e força de sexo naquele barato e baixo sentimentalismo dando outra dimensão aos insonsos relambórios.

Poluía o enredo, a transformar dramalhão e personagens, a virgem das campinas em lúbrica marafona; os adamados mancebos, quase eunucos, cresciam em garanhões brutais. Em vez de colecção Menina e Moça para adolescentes, romances pornográficos, leitura para alcova.

O mesmo se passava com a excitante crónica da cidade, no comentário das comadres, nas páginas das gazetas. Em cadeiras na calçada, compunha-se a roda nocturna das amigas no relato e no debate do último crime apaixonante: a mucama deflorada pelo patrão, ela com quinze anos e onze irmãos; ele com cinquenta e três de idade e cinco filhos, dois doutores e três filhas já casadas, sem falar na esposa e nos vários netos; o pai carpina, de arma em punho para vingar sua honra; três tiros no coração do baluarte da sociedade, do esteio do civismo e da moral, do líder dos conservadores; ferimento de morte e o criminoso preso, metido na enxovia, após uma surra para acalmar-lhe os nervos; honra lavada a sangue e o povo a exigir justiça, liberdade para o vingador.

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