terça-feira, junho 22, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 152



Terrível patriota portenho, esse senhor Bernabó, a estabelecer permanente paralelo entre a argentina e o Brasil, e sempre, é claro, com vantagem para a sua pátria; a salientar em conversas e discussões o desenvolvimento argentino, as riquezas, o clima – com as quatro estações bem definidas – não esse calorão daqui o ano todo – as estradas de ferro exemplares – não essa bagunça daqui – os trens sem horário – as frutas finas, europeias, o vinho, o pão de trigo puro, a carne farta e macia, de gado de raça. Dona Nancy em pânico quando o marido desembestava em civismo, saía de seu silêncio para contê-lo:

- Pêro, Bobo, acá tambien hay cosas buenas... Mira los ananases, por ejemplo... bueníssimos... – doida por abacaxis e temerosa de ver o marido num conflito, às voltas e às tapas com um patriota brasileiro dos brabos, um militante do me-ufanismo nacional.

Assim, aliás, quase acontecera e por mais de uma vez. Certa ocasião, num desses debates geoeconómicos, seu Chalub, do Mercado (filho de sírios, brasileiro de primeira geração e, por isso mesmo, chauvinista exaltado), perdeu as estribeiras e, rebaixando a fábrica de cerâmica a olaria de telhas e tijolos, lançou no rosto do iracundo Bernabó a pergunta incivil:

- Se a indústria de lá é tão melhor, se a vida é tão melhor, por que então você veio montar aqui a sua olaria?

Também o pintor Carybé ( o tal que fizera o retrato de Dionísia de Oxóssi vestida de rainha, empunhando o ofá e o erukerê), tendo ido estudar com o argentino a possibilidade de queimar em seu forno umas peças folclóricas, viu-se envolvido numa polémica sobre tango e samba, e findou por explodir:

- Coisa nenhuma… uma terra onde não tem mulatas, tudo umas brancarronas, isso é lugar onde ninguém more… Faça-me o favor!

No aniversário de seu Sampaio, porém, o intimorato defensor da grandeza argentina esteve cordialíssimo. Se exaltou a sua terra não o fez em detrimento das coisas brasileiras. Ao contrário, teceu verdadeiro hino ao povo da Bahia, à sua maneira de ser, sua gentileza, sua bondade. Foi assim o aniversário do lojista um sucesso social, apenas toldado pelo incidente (aliás, sem repercussão fora do círculo das amigas e comadres) entre dona Flor e seu Aloísio.

Dona Flor tivera dúvidas sobre se podia ou não comparecer às comemorações. Sendo jantar de tantos convidados, não adquiria carácter de festa, incompatível com seu estado de luto? Não completara ainda um ano da morte do marido; em verdade faltavam apenas uns poucos de dias, mas uma viúva deve ser rígida em seus princípios, pois a ideologia da viuvez é sectária e dogmática.

O menor desvio lança aos calcanhares da enxerida a alcateia das comadres, em condenação e repulsa.

Dona Norma riu de seus escrúpulos: desde quando um jantar, simples jantar de aniversário, era defeso às viúvas? Não se tratava de baile, nem mesmo de assustado; e se Arthur e seus amigos, rapazes e moças estudantes, pusessem um disco na vitrola e arrastassem um samba, pura brincadeira de jovens, não ia o passatempo inocente interferir com o rigor dos prazos na etiqueta
do luto, no cerimonial da viuvez, não ia escandalizar o defunto em sua cova.

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