sábado, julho 24, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 181



Finalmente ia transpor o duro tempo, a negra noite, o deserto de luto e solidão: outra vez em cavalgada partiria a vadiar.

Sentou-se doutor Teodoro na ponta do sofá e foi o silêncio, a espera, minuto solene, inesquecível e muito incómodo. O farmacêutico percorreu com os olhos a sala cheia, dona Norma sorriu a animá-lo. Então, pondo-se novamente de pé e dirigindo-se a dona Flor e aos tios disse como ficaria feliz “se ela quisesse lhe fazer a mercê de aceitá-lo como noivo, futuro esposo em breve prazo, dispondo-se a ser sua companheira na estrada da vida, estrada pedregosa, feita de obstáculos e tropeços, a transformar-se, no entanto em paraíso se ele contasse com seu apoio e bálsamo…”

Arenga de orador, digna de bacharel ou de político, faceta inédita de doutor Teodoro essa retórica; “que homem mais completo de virtudes”, pensou dona Maria do Carmo, de todos os presentes quem menos tratara com o pretendente. Enquanto isso ele prosseguiu, afirmando já sentir-se nos umbrais do paraíso pelo facto de ver-se ali, entre os tios e os amigos mais dilectos de quem era o motivo da sua vida; lástima não estivessem presentes a irmã e o irmão, a cunhada e o cunhado, e sobretudo a dedicada e veneranda velhinha, a santa mãe de dona Flor…

Tão imprevista citação de dona Rozilda quase engasga dona Amélia, um frouxo de riso na garganta: “espere e já verá a santidade da velhinha…” a mão tapando a boca, desviando os olhos para não fitar dona Norma ou dona Êmina.

Doutor Teodoro, em resumo, desejava, em presença de tantas testemunhas de alta valia, solicitar a mão de dona Flor, sua mão de esposa. Tão lindamente disse que dona Norma não se conteve, bateu palmas ante a indignação de seu Sampaio: onde já se viu aplausos em momentos assim, quando se impõe a mais discreta compostura? Mas dona Flor pôs tudo em ordem e em harmonia levantando-se ela também, estendendo a mão e a face ao pretendente dando-lhe o sim:

- Eu também me desejo casar consigo…

Ele apenas aflorou a face da noiva, e logo foi uma confusão de abraços, de felicitações e parabéns, beijos das mulheres e o sereno indócil invadindo a casa, doutor Teodoro a ouvir repreensões:

- seu enganador, santo de pau oco…

Farta mesa de doces e salgados atiraram-se indómitas as comadres. Marilda e a empregada serviam licores feitos em casa: de ovos, de violetas, de groselha, de umbu, de araçá, cuja gostusura levou o farmacêutico a risonho engano:

- Ah!, esses licores são excelentes. São feitos pelas freiras do convento da Lapa, não é?

Porque o paladar lhe soubera conhecido, degustados em casa também acolhedora, assim confortável de calor humano. Riram, porém, de sua certeza e mesmo como hipótese não a quiseram aceitar, considerando-a quase um insulto: não tinha ele por acaso notícia dos dons de dona Flor? Não apenas cozinheira insuperável, doceira sem rival, mas também mestra em licores; os das freiras da Lapa, do Desterro ou dos Perdões, eram xaropes, xaropes de farmácia, seu doutor, não podiam comparar-se aos de sua noiva, nem de longe…

Dos licores não sabia; confuso, em autocrítica e penitência, dava a mão à palmatória; sabia, sim, da fama régia da cozinha, não sendo dona Flor professora de temperos por acaso e, sim, por competente, por verdadeira artista. Nunca lhe fora antes dado provar essas delícias,
infelizmente; mas chegara o tempo da desforra. Ia engordar muito, com certeza.

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