sexta-feira, julho 23, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 180


Vai-se ver talvez nem desse, fosse séria de verdade… o que afinal era um consolo, concluía melancólico seu Sampaio, encerrando também a conferência.

No dia seguinte, contrariando mais uma vez ses hábitos, demorou-se seu Sampaio a sair para a loja de sapatos: fazia hora para encontrar doutor Teodoro na drogaria, desobrigando-se logo da prebenda.

Foi conversa cordial se bem de início seu tanto difícil, cheia de dedos e de reticências, seu Sampaio sem saber como introduzir o assunto, doutor Teodoro estreante naqueles embelecos. Entenderam-se, porém, em mútua boa vontade: o lojista pleno de simpatia pela causa, o farmacêutico disposto a qualquer acordo desde que nele se incluísse o casamento com a viúva, numa paixão definitiva de homem maduro.

Deu-se o encontro no laboratório, nos fundos da botica, em aparência ao abrigo de olhares e ouvidos indiscretos. Em aparência apenas, pois mesmo naquela hora matinal dona Dinorá, em permanente vigilância, observou a cautelosa abordagem de seu Sampaio, sua demora suspeita no recesso do laboratório (nem tratamento de sífilis tardava tanto), e meteu a cara a pretexto de sua injecção contra o reumatismo (em verdade só devia tomá-la no dia seguinte e no horário vespertino).

O susto dos conspiradores ao ver a face da insolente seria confissão bastante, não tivesse ela ouvido pedaço da conversa, assertiva reveladora do comerciante em calçados:

- É o caso, meu caro doutor, de parabéns às duas partes, ao senhor e a ela… Ambos merecedores…

Logo esteve a notícia em todas as bocas, circulando nas ruas em redor, dona Flor recebendo felicitações mesmo antes de saber do sucesso da missão com tanto brilho levada a cabo por seu Zé Sampaio (aliás escolhido para padrinho no ato religioso em agradecimento).

Na noite de sábado, na expectativa do encontro do pretendente com a viúva, reuniu-se pequeno e animado sereno ante a casa de dona Flor; as comadres postaram-se desavergonhadas no passeio do argentino, brechando a sala de visitas da escola de culinária.

Dona Flor aguardava sorridente e calma a visita excitante; encontrando-se, como devido, cercada por seus parentes próximos, no caso os tios e por seus amigos mais íntimos (inclusivé dona Dinorá, que ameaçara guerra sem quartel, senão fosse convidada, três ou quatro casais, dona Maria do Carmo e a moça Marilda (tão nervosa como se fosse o pedido da sua mão) e, na melhor cadeira, o doutor Luís Henrique, personalidade da administração pública e das letras pátrias, amigo da família, uma espécie de parente rico. Lá fora o sereno crescia em gente e em saliência.

Doutor Teodoro surgiu na hora exacta, na precisão de seu cronómetro suíço, numa lordeza que só vendo, flor à botoeira, um figurão esplêndido, a estremecer todas as comadres. Recebido com certa cerimónia por tia Lita, após cumprimentar todos os presentes, dirigiu-se ao lugar que, segundo rígido protocolo, lhe designaram: no sofá, ao lado de dona Flor.

Dona Flor resplandecia num vestido novo, formosa e simples em rubor e pudicícia, toda de cobre e ouro. Ninguém poderia adivinhar, vendo-a tão tranquila, de ânimo tão seguro, como por dentro estava morta de agonia, opressa em aflição, como crescera sua ânsia naqueles dias de esperança e dúvida.

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