sexta-feira, julho 30, 2010


DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 185




Por que, meu querido, esse medo, esse temor? Por que não me tomas em teus braços, não me beijas a boca, não me levas para o leito? Não vês como espero impaciente, não enxergas a fome em minha face, não ouves meu coração descompassado, não advinhas minha ânsia? – dona Flor tinha também revelações de estrelas em seu céu nocturno, secreta astronomia.

A seu lado, na janela, tendo-a contra o peito, pensa doutor Teodoro em como agir para não magoá-la, não feri-la por indecente ou chulo. Cuidado, Teodoro, não te afobes nem te apresses, por imprudência és capaz de por tudo a perder; podes lhe dar, a esta criatura tão direita, um choque do qual ela jamais se refaça.

Não confundas, na cama, tua esposa com mulher da vida, com despudorada marafona; com meretriz paga para satisfação do homem, para o vício, de quem se abusa e com quem se pode agir sem levar em conta a compostura e o pundonor. Para a luxúria existem as raparigas e seu triste ofício. As esposas são reservadas para o amor. E o amor, tu o sabes, Teodoro, é feito de mil coisas diferentes e importantes. Inclusive de desejo, mas de um desejo tão do espírito como da matéria; cuidado em não torná-lo sórdido e obsceno. Esposa exige prudência, sobretudo no trato de coisas de tal delicadeza, e a noite de núpcias é sempre decisivo ponto de partida para uma vida feliz ou infeliz. Ainda mais quando a esposa teve a amarga experiência de um primeiro matrimónio desastroso.

Pelo que lhe contaram fora não apenas amarga mas dolorosa e cruel aquela primeira experiência, fora tão-somente sofrimento e humilhações. Deves ser, por isso mesmo, um marido tão dedicado e terno que consigas arrancar do coração sofrido da esposa até à última lembrança de uma vilania ou de uma falta de respeito. Sim, ele lhe dará quanto lhe faltou, e nunca motivo para sofrimento e humilhações.

Naquela hora de inibido anseio, de busca de compreensão e ternura, cada qual com seus enganos, numa rede de equívocos, tacteando às cegas um caminho, pelo céu partiram impávidos astronautas, e assim puderam reencontrar na órbita das estrelas a necessária calma e alguma intimidade.

Doutor Teodoro era familiar da carta do céu, do mapa do universo, conhecia nomes de constelações e cometas, número e grandeza dos astros nas galáxias - com o dedo a indicar nos recantos do infinito a mais pura estrela, e logo a recolhendo com seu saber e sua grande mão. Ali a punha, no rebordo da janela, sobre a pequena mão da esposa.

Naquela noite de núpcias ele lhe deu o que jamais amante algum a sua amante pôde oferecer: colar de astros com luz divina e com os volumes, os pesos e as medidas, sua posição no espaço, sua elipse e sua distância exacta. Com o dedo doutoral ele no céu os elegeu, dispondo-os numa ordem de grandeza: no colo de dona Flor os astros translúcidos refulgiam.

Aquela estrela grande em teus cabelos, aquela quase azul, colhida na fímbria do horizonte, a que mais brilha, a maior de todas, ah!, querida minha, é o planeta Vénus, impropriamente designado estrela da tarde ou vespertina quando acesa no crepúsculo e na noite, e estrela da manhã ou matutina, ou estrela d’alva, quando irrompe com a aurora sobre o mar.
Em latim, oh! bem-amada, se diz stella-maris, estrela a guiar os navegantes…

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