sexta-feira, agosto 13, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

Episódio Nº 197


Dona Norma o considerava um pouco sistemático e por demais metódico, exigindo cada coisa em seu lugar e em seu dia exacto, inimigo do improviso e da surpresa, único senão (senão no ver de dona Norma) em homem de tantas qualidades, direito, bom, de fina educação, tratando sua mulherzinha a velas de libra. Antes assim, de rígida sistemática, do que esporreteada como era dona Norma, em eterno atraso, sem ponteiro de relógio, mãe da desordem.

Ria-se dona Flor ouvindo a amiga a elogiar, em sua agitação sem medida nem horário, o equilíbrio e a ordem do doutor: “um marido desses, felizarda, não anda dando vantagem por aí, cai do céu por um descuido”. Mesmo dona Gisa, crua verdade científica a ilustrar o bairro, ao tachá-lo de feudal, reconhecia-lhe as qualidades:

- Para você, Florzinha, que busca antes de tudo segurança, impossível melhor.

Realmente, numa ordem de dar gosto, sob o arrimo e direcção de seu bom marido, com todos os detalhes nos devidos eixos, dia certo para tudo, hora precisa, dona Flor impunha-se como exemplo de fiz esposa a toda a vizinhança.

Decorria sua vida tranquila e sem imprevistos, calma e suave, vida amena, seu tempo obedecendo a cuidadosa planificação, a perfeito organograma: cinema uma vez por semana, às terças-feiras na sessão das vinte horas. Se havia mais de um filme a fazer furor na opinião geral e na opinião de A Tarde, iam duas vezes, mas muito raramente e jamais às matinês, não suportando o doutor a ruidosa bagunça das moças e rapazes, barulhenta juventude.

Duas vezes por semana, pelo menos, após a janta, ele ensaiava seu fagote para a tarde dos sábados, sagrada, quando se reunia a orquestra em casa de um ou outro musicista. Eram reuniões das mais alegres e cordiais, em torno a gorda mesa de merenda – a dona da casa excedendo-se para acolher os amadores – com refrigerantes e sucos de frutas para as damas, cerveja farta para os cavalheiros, por vezes uma cachacinha, se o tempo era de frio ou se era tempo de canícula. Sentava-se a assistência, admiradores do maestro ou dos intérpretes, selecta assistência dos amigos a ouvir sonatas e gavotas, valsas e romanzas, na emoção das fugas e dos psicatos, dos graves e agudos, dos estudados solos; excelsa hora de arte.

Nas outras noites livres iam de visita ou as recebiam. Se dona Flor deixara ao abandono suas relações, quando de seu primeiro matrimónio, agora as cultivava com absoluta regularidade.

Duas vezes por mês, em dia certo, por exemplo, eram infalíveis em casa do doutor Luís Henrique, trazendo dona Flor para os meninos um pão-de-ló, um manué de milho, um prato com cocadas brancas ou quindins, uma bobagem, uma gostosura.

Impando de orgulho, incorporava-se doutor Teodoro à roda eminente reunida na sala do ilustre amigo, toda ela da mais alta distinção, como o doutor Jorge Calmon, ex-Secretário de Estado, doutor Jaime Baleeiro, advogado da Associação Comercial, o historiador José Calanzas, da Academia e do Instituto, o doutor Zézé Catarino (o nome já diz tudo), o doutor Rui Santos, político, professor e literato, e outros pró-homens da administração, do Instituto Histórico, da Academia Estadual de Letras.

Para doutor Teodoro, eram noites gradas, de prazer espiritual, quando lhes era dado praticar com “figuras exponenciais” ouvindo-as com respeito e opinando com prudência no erudito cavaco
sobre os profundos temas em debate.

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