sexta-feira, setembro 24, 2010

DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 233



E claro que dona Norma foi, não sozinha mas com dona Flor e o doutor (como desprezar um convite que era um privilégio? Só mesmo seu marido, casmurro e anti-social, um bicho de mato).

O comendador dissera a dona Imaculada:

- Quero tudo do bom e do melhor…

Foi tudo do bom e do melhor, dona Imaculada podia ser uma provação cruel mas, justiça lhe seja feita, sabia receber. Contrataram (a peso de ouro) os serviços do arquitecto Gilberbet Chaves para a decoração dos jardins onde a orquestra tocaria.

- Não meça despesas, moço, quero uma coisa boa, com palanque e tudo. Gaste o que for necessário… - o comendador avaro com empregados e com despesas miúdas, abria os cordões à bolsa, empunhava o livro de cheques.

Aquelas foram palavras de mel aos ouvidos de mestre Chaves, não medir despesas era com ele. Gastou uma fortuna, mas que beleza! Parecia um jardim de contos de fada e o pequeno anfiteatro era de uma audácia arquitectónica nunca vista na Bahia: “Gilberbet – aprendam o nome certo: é Gilberbet e não Gilberto ou Gilbert, como pronunciam certos rastaqueras – demonstrou seu génio ultramoderno” (Silvinho mais uma vez e não a última, com certeza).

Dona Flor ao entrar, abriu a boca de admiração e pasmo. Dona Norma só pôde articular uma palavra:

- Porreta!

Dona Imaculada e o comendador recebiam os convidados, ela embrulhada em trapos vindos da Europa, a empunhar seu lornhão, ele mal-ajambrado apesar do smoking, da camisa de peito duro, do colarinho de ponta virada. Ao ver doutor Teodoro de fagote em punho, seu rosto pintalgado de panos brancos se abriu num sorriso:

- Caríssimo Teodoro! Vamos dar a nota hoje… - feliz com o concerto e o trocadilho.

Erecta, dona Imaculada estendia a ponta dos dedos para o beijo dos homens, a curvatura das mulheres como se uns e outros viessem lhe pedir a bênção.

- Que estrepe – disse dona Norma apenas se viu longe do lornhão da comendadora.

- Muito caridosa, porém… É Presidente da Sociedade de Assistência aos Gentios da África e da Ásia… Até já me escreveu sobre esse assunto – doutor Teodoro recebera há tempos uma circular pedindo ajuda para as missões católicas naqueles continentes, assinada pela comendadora.

Logo viram Urbano Pobre Homem, reluzindo em seu smoking recém-saído do alfaiate (pago pelo comendador ao saber que o violinista não podia comparecer ao concerto por falta de traje adequado), a caixa do violino na mão. Saíra de casa sob as vaias da esposa e ali buscava esconder-se entre as árvores, passar despercebido. Doutor Teodoro arrastou-o ao anfiteatro, lá deixaram os instrumentos.

Marcado para as oito e trinta, já passava das nove quando o maestro Agenor Gomes conseguiu reunir os seus músicos e dar início ao concerto.

Os convivas, bebericando pelas salas e jardins, não revelavam pressa e fora preciso o comendador tomar, ele próprio, do microfone e berrar com raiva, a voz ríspida:

- O concerto vai começar, tomem logo seus lugares, vamos, vamos…

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