sábado, novembro 06, 2010

DONA FLOR

E SEUS DOIS
MARIDOS



Episódio Nº 263


Disposto a tomar o rumo da devassa geografia de Teresa, a negreira, não ia Arigof de todo satisfeito. Não era de seu hábito nem de seu prazer fugir de uma batalha mesmo quando em desespero, derrotado por antecipação. Lembrou-se de outro Waldomiro, seu amigo exemplar e insubstituível; Vadinho, infelizmente morto, competente e audaz, inigualável em matéria de jogo e em geral. Ele, sim, poderia lhe valer, se fosse vivo.

Há muitos anos, uma noite, após semanas de azar absurdo quando já sem vintém e sem ter onde buscá-lo, entrara Arigof no Tabaris e dera com Vadinho, soberbo de altivez e fichas, apostando alto. Tomou-lhe o negro uma ficha e o exemplo de vitória: ganhou noventa e seis contos em alguns minutos, nunca se vira coisa igual. Fora uma noite de alucinação.

Arigof mandara fazer meia dúzia de ternos de uma vez, atirando pelegas de quinhentos na cara do alfaiate. Na noite fantástica de descomunal orgia no castelo de Carla, ele pagando todas as despesas, noite lendária nas memórias de jogo na Bahia.

Engraçado: recordava Vadinho e sua pabulagem e não era que lhe parecia ouvir distintamente aquela voz de insolência?

- Então, negro fujão, onde enfiou sua valentia? No cu da branca? Quem não persegue a sorte não merece ganhar, tu sabe disso. Desde quando tu é aluno de Waldomiro Lins? Tu já não era professor quando ele veio jogar pela primeira vez?

Arigof chegou a parar a meio da Rua do Chile como um pateta, tão próxima e viva lhe parecia a voz de Vadinho em seu ouvido. Nascendo do mar, a lua começava a cobrir a cidade da Bahia.

- Deixa os ossos da branca para depois, negro covarde, tu está com medo de feitiço, então tu não é filho de Xangô? Deixa a branca para depois de ter partido a urucubaca pelo meio, hoje é tua noite de festejo.

Vadinho esporreteado, tinha os palpites mais loucos, e era igual na sorte e no azar, o mesmo sorriso trêfego e insolente. Quem sabe, pensou Arigof, Vadinho do alto da lua o estaria vendo com sua urucubaca ás costas, despido do correntão do ouro, do anel de prata, do relógio cobiçado pelo espanhol do Sete?

Cadê tua coragem, negro? Cadê o negro Arigof, três vezes macho?

Waldomiro Lins, prudente e fino jogador, lhe aconselhara a não persistir contra o azar, a se encolher, a se esconder no leito da amante, tão alva e tão sabida: Teresa recitava de memória os rios da China, os vulcões dos Andes, os cumes das montanhas. Quando via o negro Arigof, enorme e nu, ela, toda dengosa, saudava ao mesmo tempo o pico do Himalaia e o eixo da terra: pouca vergonha de Teresa! Com tanto caiporismo e com Teresa a esperá-lo, só mesmo um doido voltaria naquela noite ao carteado.

- Vai que eu te garanto negro frouxo… - a voz de Vadinho em seu ouvido.

Arigof o procurou em derredor, pois chegava a sentir o bafo do seu hálito. Era como se o amigo do passado o tomasse pela mão e o conduzisse para as escadas do Abaixadinho, ali tão perto.

- Nunca tive medo de caretas… - disse o negro.

Teresa o esperaria mastigando chocolates, envolta nos lagos canadenses, nos afluentes do Amazonas. Sem um tostão no bolso, Arigof penetrou no Abaixadinho, foi se colocar ante a mesa do lasquinê.

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