quarta-feira, novembro 17, 2010

DONA FLOR

E SEUS DOIS
MARIDOS



Episódio Nº 272



Hálito de brasas, ardido hálito de pimenta, doçura de brisa, viração do mar, ai Vadinho mentiroso e sem vergonha… Assim ele ia tomando dela, pouco a pouco, restava apenas o último reduto, seu recato derradeiro.

Naquele dia, porém, ela em vão o esperou, ele não veio. Inquieta, dona Flor rolou no leito, debatendo-se em ânsia e dúvida. Teria ido embora, de volta, magoado em seu orgulho, ofendido? Teria ido embora para sempre?

Dona Flor estremeceu a esse pensamento. Como novamente viver sem a sua presença? Sem a sua loucura, sem a sua graça, sem a sua tentação?

Fosse como fosse, porém, devia passar sem ele, se quisesse permanecer honesta, mulher direita. Era a única solução viável, aquele impasse não continha outra porta de saída. Terrível medida, provação sem tamanho, mas que fazer? Impunha-se a drástica ruptura: se Vadinho continuasse ali, não havia força de decência nem decisão de virtude capazes de impedir o irremediável.

Dona Flor não se engana: que eram as conversas senão pretexto para as carícias, para aquela luta tão tremenda e tão deliciosa?

Como resistir à lábia de Vadinho? Não a convencera ele, e dona Flor não se deixava convencer, que, à excepção da posse completa, tudo mais era brincadeira sem maldade, jogos de primos, não implicando em desonra nem mesmo em indecência? Não havendo posse, desonra não havia, mantinham-se intactas sua dignidade e a testa insigne do doutor.

Pela segunda vez Vadinho adormecera seus escrúpulos com a mesma cantiga de ninar, a mesma modinha com que a embalara nos distantes tempos do namoro no Rio Vermelho e na Ladeira do Alvo. Ela fora no acalanto e quando abriu os olhos já ele lhe comera o cabaço e honra de donzela junto ao mar de Itapoã.

Novamente agora Vadinho chegava ao cais de seu porto derradeiro, à fímbria mais recôndita de seu ser. Ao menor descuido de dona Flor, num instante qualquer de incontido anseio, ele lhe comeria não mais o cabaço de donzela mas a honra de um marido e a decência de uma esposa.

De uma esposa modelar, de um marido exemplo dos bons maridos. Quando o pobre menos pensasse, em sua testa floresceriam chifres, e seria a maior das injustiças. As sementes desses injustos cornos já estavam plantadas pelas mãos de Vadinho, por sua boca de beijos, por seu calor de homem a acender em dona Flor gula e pecado.

Sim, só havia uma solução, única e certa: Vadinho retornar para donde viera, só assim estariam garantidas a honestidade da esposa e a testa do droguista. Dona Flor ia romper o coração, ia sofrer demais, mas onde outro caminho, outra porta de saída? Ela lhe explicará gentilmente suas razões. “Perdoa, meu amor, é impossível continuar assim, já não posso mais. Perdoa-me se te chamei, foi tudo culpa minha, adeus, deixa-me em paz…”

Em paz? Ou em desespero? Fosse como fosse, pelo menos honesta, mulher direita, fiel a seu marido.

Vadinho não apareceu. Nem no quarto, na hora do crepúsculo, nem
depois na sala, na hora do jantar
.

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