sábado, novembro 27, 2010

DONA

FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS



Episódio Nº 280


Era noite de Domingo, os salões superlotados. A orquestra atacou um fox, os pares saíram para a pista de dança, Mirandão reconheceu o argentino Bernabó e dona Nancy. Na caixa trocou os cem mil réis de dona Flor por fichas. Pôs duas no bolso, das menores. “Estas são para o 17 do Vadinho, mais tarde”. Dividiu as outras em dois grupos uniformes: metade para o 3, e metade para o 32.

Na mesa da roleta sorriu para o Lourenço Mão-de-Vaca, o crupiê, seu velho conhecido. Com mão certeira atirou com uma ficha para o 3, e outra para o 32. E eis que voltearam as duas no ar e foram ambas juntas cair no 17. No momento exacto em que Lourenço anunciava jogo feito.

Deu, é claro, o 17. E nunca mais pararia de dar, para todo o sempre e certamente, se à meia-noite e pouco, sob pretexto de defeito na bacia da roleta, Pelancchi Moulas não ordenasse a suspensão do jogo.


No apartamento de Zulmira, no regaço da cabrocha, na bem-aventurança dos seus fartos seios, Pelancchi Moulas ouvia o relatório do professor Máximo Sales: a bacia e a mesa da roleta, desmontadas peça por peça, sujeitas a todos os testes, não revelaram vício ou defeito, nenhum sinal de bandalheira.

- Eu já sabia… É inútil… - gemeu o pobre rei.

Ali, naquele endereço conhecido apenas de uns poucos, escondia-se o grande homem, o dono da cidade, o chefe do governador, fugindo aos chatos e às aporrinhações. Em seu escritório ( “Pelancchi Moulas, empresário”) era um desfile permanente, da manhã à noite: indivíduos de variada espécie, comissões de todo o tipo, cada qual com sua lista, sua carta, seu pedido, seu problema, seu aleijão, sua vigarice. Vinham todos em busca de dinheiro.

Dinheiro para construir igrejas, comprar sinos, contribuições para hospitais e obras pias, para asilos de velhos e reformatórios de crianças, ajuda para caravanas de estudantes ao sul e ao norte do país. Jornalistas e políticos, ávidos, insaciáveis, necessitando todos eles de um dinheirinho para salvar a pátria, a moral cristã, a civilização, e o regímen de tenebrosa e fatal ameaça da subversão e do ateísmo. Literatos com planos de revistas e originais de livros: “o senhor é amigo da cultura, das letras e das artes, da poesia; é o próprio mecenas redivivo (Pelancchi tinha vontade de dizer. “Mecenas é a puta que o pariu”, em vez disso soltava uma pelega de vinte ou de cinquenta, conforme fosse o mordedor um jovem génio ou um velho sonetista). Reformadores, moralistas, católicos, protestantes, esotéricos, todos os que combatiam os maus costumes e a anarquia, o perigo comunista e o amor livre, o iníquo abandono das regras da gramática portuguesa (o pronome oblíquo a começar as frases) e o escandaloso decote dos maiôs nas praias (exibindo tudo, até as vísceras). A Associação das Mães de Família em Permanente Vigília contra o Álcool, a prostituição e o Jogo, sendo as mães de família principalmente António Chinelinha no começo da sua carreira promissora; a Sociedade Protectora das Missões na Oceânia; a Campanha contra o Analfabetismo, do Major Cosme de Faria; a Devoção de São Genaro e o clube Carnavalesco das Alegres Morenas do Cabula. Enfermos de todas as enfermidades, da lepra ao câncer, da bubônica ao beribéri, da doença de Chagas à doença de São Guido e os batalhões de cegos e pernetas, de cotos, sem falar nos malucos e naqueles que vinham pedir dinheiro, pura e simplesmente, sem nenhum pretexto, com a cara mais limpa deste mundo.

Pelancchi descansava de tudo isto no apartamento e nos seios de Zulmira, refúgios agora mais que nunca preciosos: só neles cabendo o medo pânico a acometê-lo, a dominá-lo
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