quinta-feira, dezembro 09, 2010

DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

Episódio Nº 289


Aquela vertigem a dominá-la, dona Flor sem forças para opor-se aos avanços de Vadinho, para defender o limite final de sua honra. Ah!, se ao menos tivesse a quem pedir socorro! Vadinho está cá com pressa, deve voltar ao jogo, veio às carreiras: “Vamos vadiar na cama, meu amor, meu amor”. Ela se põe de pé, nos braços dele, já não resiste, que lhe importa honra e marido? “Onde quiser, meu amor.”

- Posso entrar, minha comadre?

Dionísia de Oxóssi foi cruzando a porta e foi dizendo:

- Que é que tem, minha comadre? Está tão pálida…

Sentando-se de novo, salva por milagre, dona Flor murmura:

- Foi Deus que lhe mandou, comadre Dionísia. Só você pode me ajudar. Sente aqui, junto de mim.

- O que é que vosmicê tem, comadre? Está tremendo toda…

Dona Flor segurou as mãos da iawô de Oxóssi:

- Comadre, preciso de alguém que dê um jeito de me livrar de Vadinho, que mande ele embora e não deixe mais me perturbar pois faz tempo que está me perturbando, e eu já não sou eu, já nem sei o que faço, minha vontade se acabou.

- O finado, meu compadre?

Arranje para ele voltar para seu sossego, porque senão nem sei, comadre, o que irá acontecer… Nem posso lhe contar… Toda a hora ele quer me levar com ele, ainda agora quando você chegou eu estava querendo, e me deu uma leseira, quase que eu vou… Se continuar, acaba me levando…

Dionísia cobriu a boca com a mão para não gritar:

- Ai, comadre, corre pressa, é preciso fazer logo alguma coisa. Vou agora mesmo falar com o pai Didi, por sorte sei onde ele está cobrindo obrigação. Essas coisas de egun não é para qualquer. Só para quem usa o bastão de ojé.

Ai, meu Deus, comadre…

- Didi? - dona Flor de súbito se recorda do negro magro no mercado das flores a lhe dar o mokan para o túmulo de Vadinho. – Vá, comadre, vá depressa, se há alguém capaz de me salvar é ele. Senão, comadre, estou perdida, uma desgraça sem remédio vai acontecer.

- Agorinha mesmo…

Saiu Dionísia protegida por seu colar de Oxóssi, toda pequena no medo dos eguns; forte, porém, no desejo de salvar a vida da comadre: desgraça sem remédio que outra coisa pode ser senão a morte? Depressa. Dionísia, mais depressa, pelos caminhos esconsos e estreitos até às portas do reino de Ifá: em sua encruzilhada encontrarás o babalaô e seus poderes.

- Meu pai – disse a iawô ao lhe beijar a mão – o finado quer levar a minha comadre, salve ela, amarre o egun em sua morte – E lhe contou a história, aquilo da história ela sabia.

Naquela mesma hora, todo molhado, regressava doutor Teodoro. Devido à chuva, não houvera ensaio. Bebeu uma gota de licor, precaução contra a gripe, vestiu o paletó de pijama e tomando o fagote executou para dona Flor músicas escolhidas do seu selecto reportório. Ouvindo-o, foi-se erguendo dona Flor do susto e da tristeza, do nojo de si mesma, mulher casada de virtude frágil. Não tens mais nada a temer, Teodoro, eu te amo e sou tua e somente tua, hoje, neste sábado com direito a bis, e amanhã e para sempre. Nenhum coração deve conter dois amores a um só tempo, mandei arrancar metade de meu ser, e aqui estou, de novo inteira e íntegra, a ouvir tua música ao fagote; aqui estou, Teodoro, tua honrada esposa.

No outro lado da noite da Bahia, um clarão se acendeu e dentro dele o babalaô fez o jogo dos búzios com a prece de Dionísia, filha de Oxóssi. A chuva então se virou em tempestade, o trovão rugiu, as luzes se apagaram, o mar se ergueu em fúria, e os orixás, cavalgando raios e coriscos, um a um foram atendendo ao chamado do Asobá. Todos disseram sim, menos Exu que disse não.

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