domingo, janeiro 02, 2011

DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

Episódio Nº 309


Riram os dois: ali era preciso mais que sorte, era preciso coragem e olho vivo para não se ser roubado. Mas Anacreon naquela noite não se importava de perder, no azar ou na batota. Só não queria aquela sorte de milagre, o lucro sem graça, sem luta, sem prazer. Assim é a natureza humana.

Arigof, tendo começado antes, ainda tardou uns dias a partir para a espelunca de três Duques, para o antro de Zezé da Meningite, onde o jogo era jogo de verdade. Por que a demora? Diga-se tudo: o ganho fácil ameaçara corromper o íntegro carácter de Arigof. Dera na mania de sustentar mulher, de gastar com amante, numa inversão total dos bons costumes. Enchia Teresa de presentes tendo-lhe comprado um globo em relevo e um pássaro cantor para lhe embalar o sono. Queria a todo o transe assumir as despesas do aluguel, de armazém e as demais.

Sentindo-se frustrada e ofendida, a geógrafa fez-lhe ver o absurdo e o ridículo da situação: a ela Tereza Negritude, competia sustentar a casa e o negro macho, ela tinha seu orgulho, sua honra a defender. Um ou outro presente ainda vá; o pássaro a deixara comovida, mas daí a querer contribuir para o aluguel, ah! era um despropósito.

Arigof, graças a Tereza, viu em tempo o abismo ante seus pés; já não ia ao casino pelo jogo e, sim, pelo dinheiro. Onde sua inteireza de homem e seu prazer de jogador? Reencontrou-se na espelunca de três Duques, no antro de Zezé de Meningite, e outra vez Tereza lhe abriu seu mar de espumas, sua branca latitude.

Quanto a Mirandão, já se sabe o que lhe aconteceu: a promessa feita em hora de terror. Permaneceu boémio, a povoar a noite com suas histórias e seu sorriso, sua cachaça longa: nunca mais jogou, porém. Não quis sentir novamente a presença do impossível.

Giovanni Guimarães, ao retornar aos salões do Palace não era mais o antigo jogador, fizera-se alto funcionário e fazendeiro. Assim sendo, por seu gosto, passaria o resto da vida a ganhar no 17, pondo em terra e bois, em pastos de capim, o dinheiro de Pelancchi. Mas sua esposa e a sociedade censuraram a sua volta ao jogo e o simpático jornalista, membro recente das classes conservadoras, dobrou-se ao lar e ao crédito bancário, tornando a dormir cedo. Não saiu do Palace para o antro dos três Duques ou de Zezé, para o covil de Paranaguá Ventura. Foi para seu leito de casado, para sua respeitabilidade. Moveram-no sérias e excelentes razões, sem dúvida, não porém do mesmo teor moral das de Anacreon e de Arigof.

Assim, correram paralelas as três acções e juntas chegaram ao seu destino: o acordo interplanetário do Capitão do Cosmos com os marcianos, o jogo de pedir e dar, inocente brincadeira em que se entretinha o místico e a amazona para iludir o tempo; e o fastio dos amigos de Vadinho.

A vitória de Cardoso e Sª. só não abalou as convicções materialistas do professor Máximo Sales, renitente e cabeçudo. Tudo claro para ele: esse Cardoso, com sua aparente maluquice e essas conversas para boi dormir, só podia ser o chefe da quadrilha e Zulmira sua cúmplice. Os dois se conheciam há muito tempo e eram amantes, só mesmo Pelancchi, corno velho, não se dava conta. Não sendo assim, como explicar então o acontecido?

Surpreendente, insólito Cardoso e S.ª, Cardosinho para os íntimos, como Zulmira: quem o diria tão familiar das coisas do amor? Não só do amor em nosso astro mísero e minúsculo, mas também nos planetas mais progressistas, nas galáxias mais ricas. Catedrático na doce disciplina que ministrava à aluna atenta. Atenta e perguntona:

- Em Saturno, como é, me diga, Cardosinho. Como beijam se não têm boca, como pegam senão têm mão?

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