domingo, dezembro 11, 2011

HOJE É


DOMINGO


(continuação)




Os tempos passaram. Nada mais aconteceu depois daquele surrealista telefonema até que um dia, sem se fazer anunciar como era hábito daquela gente, dei por mim, quando levantei a cabeça, com o senhor inspector à minha frente no meu gabinete de trabalho.

Uma das prerrogativas daqueles “defensores do regime” era, querendo, o de entrarem na casa das pessoas, nos locais de trabalho, em qualquer lado, de surpresa, sem avisarem. Como polícias muito especiais que eram, o factor surpresa, fora de qualquer processo de averiguação ou de Autorização Judicial que o permitisse, constituía uma espécie de “marca” identificadora da sua autoridade e poder.

Com ar altivo, o peito cheio, não se sentou, olhava-me de pé, de cima, em sinal de superioridade e de dominação… “estou aqui para lhe mostrar que não estou zangado… aqui tem – e acompanhou as palavras com os gestos – dinheiro estrangeiro que foi apreendido, para fazer entrega dele no Banco de Moçambique…” disse, enquanto colocava em cima da secretária um maço de notas e saíu com o seu avantajado corpanzil numa retirada de estilo, sempre para impressionar…

Os meses continuaram a passar e desembocaram na Revolução do 25 de Abril em Portugal, com cravos distribuídos no Rossio, coração de Lisboa, que os soldados enfiaram nos canos das espingardas em imagens que correram mundo, numa extrema humilhação para os Srs. Inspectores, zelozos defensores do regime.

Não tiveram oportunidade de mostrar a valentia e a coragem de que se fizeram portadores durante tantos anos… acabaram presos, perseguidos, muitos acossados como bichos pela população, mãos nas paredes, pernas abertas, calças arriadas, cuecas à mostra… era a hora do "reviralho"!

Eram umas dez da manhã quando a notícia me chegou, hora histórica para mim e para todos os portugueses aquela em que souberam da revolução. A vida de todos ia dar uma cambalhota, o curso ia mudar e muito mais, ali, nas colónias.

Fui até à praça do Município e era enorme o entusiasmo, faziam-se discursos, davam-se gritos à liberdade, muito provavelmente por elementos de um núcleo contrário ao regime de Salazar/Caetano que vivia clandestinamente na cidade.

Encostei-me a uma coluna e observei o ambiente de alegria e de vitória que se vivia na Praça e pensei, lembro-me bem de ter pensado, que muitas daquelas pessoas, quase todas, não tinham razões para estarem alegres. Era apenas o momento de euforia a que alguns, que esperaram tantos anos, tinham direito. Aquela, no entanto, não era a terra deles, era o local errado, o equívoco ia finalmente desfazer-se e o parto de um novo país iria ser para todos muito doloroso…

Samora Machel disse: Portugal não nos deu a independência, nós é que ganhámos a guerra! Esta era a mensagem que ia ao encontro do orgulho dos moçambicanos mas que escondia uma outra, implícita, lógica e perigosa: os portugueses, colonialistas ou não, eram considerados “despojos” de guerra, restava-lhes abandonar o território.

Para os moçambicanos ficou um país vazio de actividade económica, palco para uma futura guerra civil, também conhecida como a guerra dos Dezasseis Anos entre o exército de Moçambique (Frelimo) e a Renamo…

À tarde o telefone tocou. Era um amigo meu do tempo do Liceu e da Faculdade, pessoa de confiança do regime que superintendia numa empresa de um grupo económico importante daquela região.

Trabalhava no edifício contíguo ao meu e pelo grau de confiança e amizade que tínhamos pedia-me que fizesse um favor ao Sr. Inspector que estava ali ao pé dele, em desespero, porque precisava com rapidez de uma Autorização de Transferência para mandar para Portugal a mulher e as filhas.

- “Diz ao Sr. inspector que eu trabalho exactamente no mesmo local que ele conhece e se pretende alguma coisa de mim só tem que vir até cá… não precisa de te incomodar…”

Passados poucos minutos, o senhor que tinha sido até ao dia anterior o todo-poderoso inspector da Pide da cidade da Beira, entrava no meu gabinete, cabeça baixa, peito para dentro e ali ficou até eu o mandar sentar, em silêncio, incapaz de me olhar nos olhos, não fosse qualquer gesto ou palavra desagradar-me… era a segurança da família que estava em causa e ele não podia correr riscos.

- “Sr. Inspector - disse-lhe eu – se me viesse fazer este pedido há dois dias atrás dir-lhe-ia para se dirigir aos balcões, preencher o impresso e aguardar que a Autorização corresse os seus trâmites no Serviço até estar despachada para lhe ser entregue, mas o senhor, neste momento, é um homem derrotado a atravessar o pior momento da sua vida, é uma pessoa frágil e eu vou atender de imediato o seu pedido”.

Chamei uma funcionária e dentro de minutos ele abandonava a Delegação com o papel pretendido sem que eu me lembre de ter ouvido um obrigado… mas talvez o tenha dito… baixinho… já passaram tantos anos… uma vida.

No outro dia viajou para Lourenço Marques, hoje Maputo, preso, como todos os Pides que exerciam funções em Moçambique.

Numa contra-revolução em 7 de Setembro, tentativa frustrada de interromper o processo de independência em curso e reconduzir novamente o poder aos brancos numa solução tipo Ian Smith, como na vizinha Rodésia, fugiram da cadeia e refugiaram-se na África do Sul onde muitos se exilaram porque Portugal, naquela altura, não era também para eles uma terra recomendável…

Depois, com os anos, tudo acabou por esquecer… o tempo tudo apaga… os acontecimentos seguiram o seu rumo de forma inexorável, Portugal “digeriu”, como por encanto, meio milhão de retornados regressados à “trouxe-mouxe” ao ponto de partida e que, paradoxalmente, acabaram por ser eles um motor de desenvolvimento para um país adormecido pela guerra e a ditadura.

Só eu não consegui apagar da minha memória esta figura bizarra do Sr. Inspector da Pide que se cruzou comigo na cidade da Beira em Moçambique.


(click na imagem. Painéis de azulejos alusivos à cidade na Estação dos combóios de Santarém)

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