domingo, dezembro 04, 2011

HOJE É


DOMINGO (continuação)




A mente dos polícias da PIDE, especialmente daqueles que já tinham atingido a categoria de inspectores, com provas dadas e vocação comprovada, como o da nossa história, era qualquer coisa que talvez os especialistas do foro psíquico pudessem considerar como possuídos por “um transtorno mental”: ao mesmo tempo perverso, redutor, simplista, defensor de uma verdade que lhes foi impingida mas que assimilaram como indiscutível de tal forma que, na qualidade de seus guardiões, o seu ego disparou.

O mundo para eles era estreito e irreal, o quadro de valores definia-se apenas pela fidelidade ao regime e o ódio aos comunistas, e quando a revolução aconteceu, em 1974, esse mundo desabou. Apavorados, ficaram sem perceber nada do que tinha acontecido, de espírito covarde como eram, alimentados por uma autoridade e força que não era deles, ficaram vazios. Fugir, esconder, foi a única reacção.

O “nosso” inspector, que vivia na Beira com a mulher e duas filhas, aproveitando-se da lei, transferia mensalmente para Portugal uma pensão (de valor máximo) para três familiares (pais e sogro, presumo) que declarou estarem a seu cargo.

A Autorização para fazer essa transferência através do Banco de Moçambique, com a duração de seis meses, tinha-lhe sido concedida pela delegação de Quelimane, cidade onde ele exercia funções antes de ser transferido para a Beira (sinal de promoção…)

Quando aqui chegou, e embora a Autorização de Transferência que estava na sua posse fosse ainda válida por mais três meses, requereu de imediato uma nova Autorização de Transferência.

Os meus Serviços indeferiram o pedido com o argumento de que “ele estava na posse de uma Autorização que lhe tinha sido concedida pela Delegação de Quelimane cuja validade só terminaria dentro de três meses devendo, então, pedir a sua renovação por um novo período de seis meses”.

Isto mesmo lhe foi comunicado num ofício que eu próprio assinei na qualidade de Delegado da Inspecção e que caiu em cima da secretária dele como uma autêntica bomba.

Que afronta, que ousadia, que temeridade, que falta de respeito!... dizer “não” ao senhor todo-poderoso Inspector da Pide?

A raiva, a ira, a incredulidade, deixaram-no possesso, o sangue invadiu-lhe o rosto, os gestos são desabridos, pega imediatamente no telefone e quando me ouve, a sua voz em altos berros dispara em todas as direcções. Na rua, as pessoas ouvem com algum temor e param curiosas, os seus funcionários devem ter-se escondido debaixo das secretárias e eu afastei o telefone do ouvido para proteger o tímpano.

Fiquei em silêncio, não disse uma palavra, apenas recordo algumas ameaças… “que ia participar de mim”, “que me embrulhava numa folha de papel de 25 linhas”… e de mais não me lembro porque deixei de o ouvir.

À minha frente, um senhor que estava a atender, fitava-me com perplexidade sem saber o que pensar. Quando pousei o auscultador, olhei-o e disse-lhe: “desculpe, isto são ossos do ofício”.

Só uma mente completamente destorcida podia ter um comportamento assim. Em que mundo este senhor vivia?

Como era possível reagir daquela maneira a uma decisão de Serviços da Administração Pública que era obviamente legal para além de que fazia todo o sentido? Não percebia ele que atender o seu pedido teria sido uma evidente irregularidade, uma infracção da lei?

Perguntei a mim próprio, muitas vezes, porque reagiu aquele homem daquela maneira e naqueles termos e a resposta só podia ser uma:

- No exercício de uma autoridade arbitrária baseada na violência, no desrespeito total pelos direitos e dignidade dos seus concidadãos dos quais só aceitava a obediência e o temor, perseguido por todos os fantasmas que habitavam o seu espírito, aquele homem vivia no limiar da loucura. (continua)


Bom Domingo.


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