quarta-feira, fevereiro 15, 2012

GABRIELA

CRAVO
E
CANELA





Episódio Nº 23


Cerca de trinta anos se haviam passado sobre tais factos. O velho Segismundo morrera rodeado da estima geral e ainda hoje seu enterro é recordado. Toda a população comparecera, de há muito ele não tinha inimigos, nem mesmo os que lhe haviam incendiado o cartório.

No seu túmulo falaram oradores, celebraram suas virtudes. Fora – afirmaram – um servidor admirável da justiça, exemplo para as gerações futuras.

Registava ele facilmente como nascidos no município de Ilhéus, Estado da Baía, Brasil, a quanta criança lhe chegasse, sem maiores investigações mesmo quando parecia evidente ter-se dado o nascimento bem depois do incêndio.

Não era céptico nem formalista, nem o poderia ser no Ilhéus dos começos do cacau. Campeava o caxixe, a falsificação de escrituras e medições de terras, as hipotecas inventadas, os cartórios e tabeliães eram peças importantes da luta pelo desbravamento e plantio das matas, como distinguir um documento falso de um verdadeiro?

Como pensar em míseros detalhes legais, como o lugar e a data exacta do nascimento de uma criança, quando se vivia perigosamente em meio dos tiroteios, dos bandos de jagunços armados, às tocaias mortais? A vida era bela e variada, como iria o velho Segismundo esmiuçar sobre nomes de localidades?

Que importava, na realidade, onde nascera o brasileiro a registar, aldeia Síria ou Ferradas, Sul de Itália ou Pirangi, Trás-os-Montes ou Rio do Braço?

O velho Segismundo já tinha demasiadas complicações com os documentos da posse da terra, por que havia de dificultar a vida de honrados cidadãos que desejavam apenas cumprir a lei, registando os filhos?

Acreditava simplesmente na palavra daqueles simpáticos imigrantes, aceitava-lhes os presentes modestos, vinham acompanhados de testemunhas idóneas, pessoas respeitáveis, homens cuja palavra, por vezes, valia mais do que qualquer documento legal.

E, se alguma dúvida perdurava-lhe no espírito, por acaso, não era o pagamento mais elevado do registo e da certidão, o corte de fazenda para sua esposa, a galinha ou o peru para o quintal, que o punham em paz com sua consciência. Era que ele, como a maioria da população, não media pelo nascimento o verdadeiro grapiúna e, sim, pelo seu trabalho em benefício da terra, pela sua coragem de entrar na selva e afrontar a morte, pelos pés de cacau plantados ou pelo número de portas das lojas e armazéns, pela sua contribuição ao desenvolvimento da zona.

Essa era a mentalidade de Ilhéus, era também a do velho Segismundo, homem de larga experiência da vida, de ampla compreensão humana e de poucos escrúpulos. Experiência e compreensão colocadas ao serviço da região cacaueira. Quanto aos escrúpulos, não fora com ele que progrediram as cidades do Sul da Baía, que se rasgaram as estradas, plantaram-se as fazendas, criou-se o comércio, construiu-se o porto, elevaram-se edifícios, fundaram-se jornais, exportou-se cacau para o mundo inteiro.

Foi com tiros e tocaias, com falsas escrituras e medições inventadas, com mortes e crimes, com jagunços e aventureiros, com prostitutas e jogadores, com sangue e coragem.

Uma vez Segismundo lembrara-se de seus escrúpulos. Tratava-se da medição da mata de Sequeiro Grande e lhe ofereciam pouco para o vulto do caxixe: cresceram-lhe subitamente os escrúpulos. Em vista disso queimaram-lhe o cartório e meteram-lhe uma bala na perna.


(click na imagem de Gabriela - Sónia Braga - numa pose de ingénua sensualidade. Parece que mais niguém poderia ter "vestido" tão bem a pele daquela cabocla)

Site Meter