segunda-feira, abril 30, 2012

GABRIELA
CRAVO
E
CANELA


Episódio Nº 85


O jeito era encomendar em Aracaju, pagar a passagem. Parou ante uma velha, mas tão velha que certamente apenas teria tempo de morrer ao chegar a casa. Dobrava-se num bastão, como conseguira atravessar tanto caminho até Ihéus? Chegava a dar aflição, tão velha e ressequida, um resto de gente. Tanta desgraça no mundo…

Foi quando surgiu outra mulher, vestida de trapos miseráveis, coberta de tamanha sujeira que era impossível ver-lhe as feições e dar idade, os cabelos desgrenhados, imundos de pó, os pés descalços. Trazia uma cuia com água, entregou nas mãos trémulas da velha que sorveu ansiosamente.

 - Deus lhe pague…

 - Não tem de quê, avó… – Era uma voz de jovem, talvez a voz a cantar modas quando Nacib chegara.

O coronel Melk e os seus homens desapareciam por detrás dos vagões da Estrada de Ferro, o tocador de harmónica parava um instante, acenava adeus. A mulher levantou o braço, sacudiu a mão, voltou-se novamente para a anciã, recebeu a cuia vazia. Ia retirar-se, Nacib perguntou-lhe ainda na admiração da velha alquebrada:

 - É sua avó?

 - Não moço. – Parou e sorria, e só então Nacib constatou tratar-se realmente de uma jovem, porque os olhos brilhavam enquanto ela ria. A gente encontrou ela no caminho, há uns quatro dias de viagem.

 - A gente, quem?

 - Acolá… – Apontou para o grupo com o dedo e novamente riu, um riso claro, cristalino, inesperado. – A gente saíu junto do mesmo lugar. A seca matou tudo que era bicho vivente, secou tudo que era água, árvore virou graveto seco. No caminho a gente encontrou outros. Tudo fugindo.

 - Você é parente deles?

 - Não, moço. Sou só no mundo. Meu tio vinha comigo, entregou a alma antes de chegar a Jeremoabo. A tal de tísica… – E riu como se fosse coisa para rir.

 - Não era você que estava cantando há pouquinho?

 _ Era, sim senhor. Tinha um moço tocador, foi contratado para roça, diz que vai enriçar aqui. A gente canta, esquece os maus pedaços…

A mão segurava a cuia, encostada na anca. Nacib a examinava sob a sujeira. Parecia forte e disposta.

 - O que é que você sabe fazer?

 - De tudo um pouco, seu moço.

 - Lavar roupa?

 - E quem não sabe? – Basta ter água e sabão.

 - E cozinhar?

 - Já fui cozinheira até de casa rica… – E novamente riu como se recordasse algo divertido.

Talvez porque ela risse, Nacib concluiu que não servia. Essa gente vinda de serão, esfomeada, era capaz de qualquer mentira para conseguir trabalho. Que podia ela saber de cozinha? Assar jabá e cozinhar feijão, nada mais. Ele precisa de mulher idosa, séria, limpa e trabalhadora, assim como a velha Filomena. E boa cozinheira, entendendo de temperos, de ponto de doces. A moça continuava parada, esperando, a fitá-lo no rosto, Nacib sacudiu a mão sem achar o que dizer:

 - Bem… Até outra. Boa sorte.

( Click na Imagem de Gabriela chegando a Ihéus, no fim da viagem fugida da fome e da seca do sertão, na companhia de Clemente, tocador de harmónica)

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