domingo, abril 01, 2012

HOJE É

DOMINGO

(Na minha cidade de Santarém)




Será que o nosso cérebro consegue guardar experiências vividas pelos nossos antepassados mesmo de tempos remotos?

Haverá algum recanto no cérebro, a mais intrincada, complexa e misteriosa máquina da natureza, que funcione como uma espécie de arquivo morto de sensações e experiências da nossa espécie que marcaram as vidas de muitas gerações que nos antecederam e que por isso deixaram marcas que não desapareceram completamente?

É sabido já que através da comparação dos registos do ADN se pode saber hoje que duas pessoas de raças diferentes tiveram um progenitor comum muitos milhares de anos atrás o que significa que, em termos puramente biológicos, o passado mais remoto se liga ao presente através de um fio condutor inserido no ADN das pessoas.

E a pergunta que faço é se comportamentos de vida, importantes em termos de sobrevivência, repetidos durante muitas e muitas gerações que nos precederam não poderão ter deixado alguma marca num local recôndito do nosso cérebro.

Tive uma experiência interessante há muitos anos atrás, que creio numa outra data já aqui contei mas que volto a recordar, quando, no meio da savana africana, em silêncio, de pé, sobre o capôt de um jeep, olhava à minha volta a perder de vista, o capim, as árvores esparsas e sentia no rosto a ligeira brisa que perpassava por entre elas.

De repente, apoderou-se de mim uma sensação de pânico, mais que simples medo:

- … “estava só, perdido dos meus companheiros de percurso, indefeso, à mercê das feras, ninguém à minha beira" - embora os meus camaradas, num nível mais baixo, estivessem lá todos”.

Não sei quantos segundos, por certo fracções, durou aquela estranha sensação, mas com um impacto tão forte que para fugir a ela quase me atirei do capôt do jeep para o chão para me reconfortar de imediato com o som delicioso do motor do jeep que rapidamente pus a trabalhar e me reconduziu ao presente numa autêntica fuga daquele passado longínquo.

Quantos antepassados meus, naquele cenário onde tudo começou para a humanidade e onde pouco ou nada mudou até ao momento, não teriam vivido o drama de uma morte violenta nas garras e dentes de uma fera que bem poderia ser o tigre dentes de sabre, nosso habitual carrasco, especialmente quando nos apanhava afastados do grupo a que pertencíamos por laços de parentesco?

E por que não, momentos terríveis de pânico infelizmente vulgares para eles, vividos ao longo de tantas gerações e por tantos dos nossos antepassados, trazidos hoje num flash de uma pequena lâmpada que intempestivamente se acendeu no nosso cérebro numa situação muito especial e de rara inspiração?

Lembrei-me, novamente, desta estranha experiência com quase 50 anos quando, há poucos anos atrás, tive oportunidade de visitar, no sul da Turquia, as ruínas da cidade de Epheso.

Epheso foi a primeira cidade da Ásia Menor nos tempos antigos, ainda anteriores a Cristo e a 4ª do Império Romano em dimensão e importância. Meio milhão de habitantes podendo ser considerada berço da nossa “civilização”, talvez mais que qualquer outro local.

Ocupada pelos Gregos desde 1200 AC até 1923, dali irradiou a religião de Cristo e o pensamento científico, ali viveram as primeiras comunidades secretas de cristãos e em 400 DC teve lugar o 3º Concílio Ecuménico.

Dispunha, ao tempo, da 3ª maior biblioteca do mundo, depois de Alexandria e Pérgamo, com 12000 livros. A fachada principal de dois andares e 16 colunas repartidas pelo piso térreo e 1º andar lá estão, com toda a dignidade, para as podermos admirar.

O seu teatro para 25000 pessoas permanece muito bem conservado e é utilizado para espectáculos musicais juntamente com o de Epidauros, na Grécia.

S. João viveu, morreu e escreveu ali o seu Evangelho, S. Paulo visitou a cidade por três vezes tendo estado aqui preso e o grande filósofo Heraclito, que pertencia a uma das famílias mais importantes da cidade, ele, que foi o autor da célebre frase de que “não se entra duas vezes no mesmo rio porque tudo se move excepto o próprio movimento e numa segunda vez as águas do rio já não são as mesmas e nós próprios também não”, como hoje sabemos pela constante renovação das células do corpo humano.

Acerca dele, conta Diógenes, que retirado do templo de Artémia divertia-se a jogar com as crianças quando, chamado à atenção pelos efésios lhes perguntou:

-“ De que vos admirais, perversos? Que é melhor: fazer isto ou administrar a República convosco?”

Tales, um dos sete sábios da Grécia Antiga, era de Mileto, cidade próxima de Epheso, a sul, e com ela constituíram dois berços do pensamento filosófico.

Tales, era igualmente, para alem de filósofo, o primeiro que se conhece no Ocidente, fundador da Escola Jónica, matemático e astrónomo tendo sido a primeira pessoa que mediu o tempo com precisão utilizando um relógio solar denominado “gnômon”e previu, também pela primeira vez, um eclipse solar no ano de 585 AC e que ocorreu, na realidade, em 28 de Maio desse ano e surpreendeu o Faraó do Egipto calculando a altura da pirâmide de Kuéope a partir da sombra projectada por uma vara espetada no chão.

Tales era mais velho que Heraclito que nasceu em 540 AC e ainda era menino quando o primeiro faleceu o que permitiu que o seu pensamento sobre o dinamismo das coisas fosse retomado e problematizado por este último.

Como se diria hoje, quase tudo o que foi gente importante daquela época, imperadores, sábios, filósofos, apóstolos, políticos, viveu ou passou por Epheso e a marca que lá deixaram é a marca que nós hoje ainda transportamos na nossa sociedade.

A própria ideia da democracia é de Heráclito, tal como o nosso pensamento de carácter científico e as convicções religiosas relacionadas com o Cristianismo.

Mas a importância desta cidade e as imagens magníficas das suas ruínas podem facilmente ser observadas na Internet e nos livros mas para nos sentirmos, através de um pequeno exercício de imaginação, a passear ao fim da tarde, ao lado destas célebres figuras, vestindo como elas as túnicas da época acompanhados da família e dos escravos, é preciso ir lá e pisar as lajes, hoje polidas e desgastadas da avenida por onde eles passavam.

Mais uma sensação estranha mas esta agradável, de reencontro com o passado, um passado recente na história da humanidade, importante e decisivo para aquilo que hoje somos do ponto de vista cultural, político e religioso.

Apesar da crise, se puderem, é o melhor presente que podem oferecer a vós próprios: visitar a cidade de Epheso é visitar o “palco” onde começou a nossa civilização.

(Click na imagem de uma das principais ruas da cidade de Santarém)

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