CRAVO
E
CANELA
Episódio Nº 171
Sem nenhum efeito sobre Malvina, ela nem
se chegara a dar conta, tão embevecida nas palavras de Rómulo… Mas de intensa
repercussão em meio à sociedade.
Gesto temerário e indecoroso, só não se
fizera o centro de todos os comentários, devido a factos como o próprio namora
de Malvina e Rómulo, o incêndio dos exemplares de Ilhéus, a surra no empregado
da Intendência.
Felipe dera-lhe os parabéns pelo acto
corajoso. Assim se iniciara a sua amizade com o remendão. Josué levava os
folhetos para o quarto, em cima do cinema Vitória. Desprezou Malvina,
conservando-lhe, no entanto, amor eterno e imortal, era uma indigna.
Exaltou Glória, vítima da sociedade, de
pureza conspurcada, certamente violentada à força, expulsa do convívio social.
Era uma santa. Tudo isso escrevia - sem os nomes, é claro – numa prosa veemente
a encher cadernos. E como nada disso era representação, Josué sofria realmente,
imaginou levar Ilhéus aos supremos escândalos.
Gritar nas ruas seu interesse por
Glória, o desejo que ela lhe inspirava – o amor ainda era de Malvina – o
respeito lhe merecia. Conversar em sua janela, sair de braço dado na rua,
levá-la a habitar o quartinho modesto onde escrevia e repousava. Viver com ela
uma vida de réprobos, rompido com a sociedade, expulso dos lares. E atirar esse
horror no rosto de Malvina, clamando: «Vês a que me reduzi? És tu a culpada!»
Tudo isso disse a Nacib, bebendo no bar.
O árabe arregalou os olhos, acreditava piamente. Ele mesmo não estava a pensar
mandar tudo para o inferno e casar-se com Gabriela? Não aconselhou nem
desaconselhou, apenas previu:
-
Vai ser uma revolução.
Era o que Josué desejava. Glória, porém
retirou-se sorrindo da janela quando pela segunda vez ele para ali se dirigiu.
Mandou-lhe depois um bilhete, de péssima letra e pior ortografia, por uma
empregada. Molhado de perfume, dizia no fim: «Disculpe os borrões.» Realmente
eram muitos, faziam a leitura difícil. Da janela ele não devia aproximar-se, o
coronel acabaria sabendo, era perigoso.
Ainda mais naqueles dias, pois estava
para chegar e se hospedava com ela. Logo depois que o velho partisse, ela lhe
faria saber como poderiam se encontrar.
Novo golpe em Josué. Juntou então
num mesmo desprezo moças da sociedade e mulheres do povo. Sua sorte foi Glória
não ler o Diário de Ilhéus. Por ali escarrou sobre a prudência de Glória.
«Escarro sobre as mulheres ricas e pobres, nobres e plebeias, virtuosas e
fáceis. Só as move o egoísmo, o vil interesse. »
Durante certo tempo, ocupado a espiar o namoro
de Malvina, dedicado a sofrer, a escrever, a xingar, a viver o papel tão
romântico do amor desprezado, não voltou sequer a olhar a janela solitária.
Cercava Gabriela, escrevia-lhe versos num provisório retorno à poesia rimada,
propunha-lhe o quartinho pobre de conforto mas rico de arte, Gabriela sorria,
gostava de ouvir.
Mas na tarde em que Melk espancara
Malvina, Josué vira o rosto triste de Glória, triste pela moça surrada, triste
por Josué abandonado, triste por ela mesmo em sua solidão renovada.
Escreveu-lhe um segundo bilhete, passou junto à janela e ali o deixou.
(Click na imagem. Quem terá posto ali aquela rede?)
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