A ZECA AFONSO
Zeca Afonso foi uma personagem ímpar,
inigualável no panorama musical e na história deste país.
Não possuo nenhuma preparação musical
para falar da voz e da música de Zeca Afonso e nem sequer o meu pobre ouvido me
pode ajudar nesse aspecto mas em mim, o impacto das suas canções é tão grande
que, fora eu um crítico musical, e a diferença não se faria sentir.
A música e a voz do Zeca Afonso bate-nos
em cheio, entra-nos pelos poros, sente-se na alma, comove-nos, sensibiliza-nos.
No tempo, separam-me de Zeca Afonso
quase dez anos, ele nasceu em 29 e eu em 39 mas se ele não tivesse desaparecido
prematuramente seria hoje, com os seus 83 anos, feitos em Agosto, o mais jovem
de todos nós.
Zeca Afonso foi sempre igual a si
próprio, os anos não o moldaram, a sua intransigência à volta dos valores era
total porque o seu mundo não era deste mundo, o seu mundo era o da Utopia, ele
mesmo explica:
Cidade
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
Gente igual por fora
Onde a folha da palma
Afaga a cantaria
Cidade do Homem
Não do lobo mas irmão
Capital da alegria
Braço que dormes
Nos braços do rio
Toma o fruto da terra
É teu a ti o deves
Lança o teu desafio
Homem que olhas nos olhos
Que não negas
O sorriso a palavra forte e
justa
Homem para quem
O nada disto custa
Será que existe
Lá para os lados do oriente
Este rio este rumo esta
gaivota
Que outro fumo deverei seguir
Na minha rota?
Por isso, quando começamos a falar do artista
inevitavelmente acabamos na pessoa que sobreleva os restantes aspectos. Os
dotes de cantor e de músico constituíram uma “prenda” da natureza a uma
personalidade rica, pura e de carácter excepcional.
Por sete anos que não nos cruzámos na
cidade da Beira, em Moçambique, pois ele saiu em 1967 enquanto que eu cheguei em
1972 mas o contacto aconteceu através dos seus 5 Álbuns editados por essa
altura e que eu adquiri na cidade, dos quais me atrevo a destacar as Cantigas de Maio e dentro delas a
enorme e deliciosa Grândola Vila Morena que de tão deliciosa que era conseguiu
enganar a PIDE que não a proibiu de passar na Rádio ficando disponível para
marcar o arranque irreversível da Revolução do 25 de Abril.
Dizia, um amigo meu, há muitos anos
atrás, ainda em Moçambique, que sempre que ouvia a Grândola os cabelos dos
braços eriçavam-se e ficava com pele de galinha… e era um pacato comerciante
mais entendido em bacalhau que em política.
A guerra em Moçambique não era directamente
do Zeca Afonso, era da Frelimo e por isso regressou a Portugal deixando lá
ficar o exemplo do único professor branco que deu aulas numa associação de
negros e, claro…as canções, que foram de tal forma importantes que levaram
Samora Machel, anos mais tarde, a recebê-lo com honras de Chefe de Estado.
Considero Zeca Afonso um dos
injustiçados deste país: a solidariedade, a justiça social, o respeito pelas
pessoas, o amor desinteressado pelos outros que foram suas bandeiras em vida, nunca
constituíram verdadeiros desígnios da nossa sociedade e por isso Zeca Afonso
não tinha muito espaço nela se é que tinha algum.
O Portugal dos lucros exorbitantes, dos
especuladores, dos milionários na hora, dos oportunistas e corruptos, dos
políticos que passam a vida a manobrar para ganharem ou manterem-se no poder,
constitui uma realidade do pós 25 de Abril que seria sempre um espinho cravado
no seu coração de poeta das utopias.
Mas a sua obra é vasta e está longe de ser
apenas de temas políticos e sociais: as baladas, o folclore, os fados, as
canções de embalar, tudo lá está na melhor voz masculina do nosso panorama
musical.
Ouçam e comparem. Dizem entendidos
insuspeitos que não tivera ele nascido neste pequeno país e as suas canções já
teriam dado várias voltas ao mundo.
De qualquer maneira, elas estão editadas
em CD e não há razão nenhuma para não nos deliciarmos em ouvi-las.
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