Nosso Rei Fundador
(continuação –III)
-
«Senhor, não foste bem aconselhado, vindo cercar esta vila, lançando-vos assim
contra vosso primo, que é o cavaleiro que vós sabeis, tão brioso como cauto. Tanto
dentro da vila como em seu termo ajuntou gente em barda, pois que andava temido
e suspeitoso convosco que sois grandes na força e nas façanhas. Sim, real Senhor,
depois do encontro que por má sorte de ambos sustentastes, ele mais não tem
feito que pôr-se a recato para este e outros casos, fortalecendo fortalezas e
vilas, contando até que leve anos o cerco.
E assim ocupados, resignai-vos a deixar
as mãos livres aos fronteiros ambiciosos e aos serracenos, inimigos figadais da
cristandade e do Senhor dos altos Céus? Quanto a vosso primo reconhecer-vos
senhorio, afigura-se-me que, se partísseis daqui
sem dar a impressão que ele viria a proceder por medo ou violência, não seria
impossível induzi-lo a dirigir-se para tal fim às vossas cortes, e eu por ele e
de tanto me prontifico a render-vos preito e homenagem».
Estas palavras calaram no ânimo de
el-rei de Castela, tão pronto de ânimo como de actos, que logo levantou o
arraial e se foi para o seu reino.
O Infante é que ficou descontente quando
tomou conhecimento do que se passara. Ao que o aio atalhou dizendo:
-
«Atenta, senhor, quem vos livrou de cerco, vos livrará da vassalagem!»
Assim, quando se celebraram cortes em
Toledo, do infante D. Henrique nem novas nem mandatos. Em vez dele, compareceu
Egas Moniz com mulher e filhos, descalços, vestidos com alva de penitentes e um
baraço ao pescoço. E depois de se por de joelhos perante o imponente soberano,
em voz entrecortada de soluços gemeu a deprecada*:
-
Senhor, eu vos fiz homenagem e aqui
me apresento, com a língua que a prometeu e as mãos que a juraram, para pagar.
Demais, eu vos trago mulher e filhos para satisfazerdes vossa ira se não vos
bastar o castigo do meu corpo.
O que fiz, meu senhor, fi-lo por um
menino que trouxe nos braços, que ajudei a criar, que vi a burrinhar no chão.
Coitado, como podia ele resistir ao vosso grande poder, sem homens, sem víveres
em casa, se eu não tomasse o conselho de praticar o que pratiquei?
O rei possuído de grande senha, logo ali
o qui s mandar degolar. Mas os
fidalgos se intrometeram atalhando:
-
Senhor, D. Egas procedeu como nobre e leal vassalo. Tomaram os príncipes
encontrar sempre destes servidores que mais têm jus à mercê que ao castigo!
Abrandou el-rei de Castela em sua ira e o
mandou na paz de Deus com muitos afagos e dons.
Assim começou o reinado deste grande
príncipe D. Afonso I de Portugal, tal os contos da Madre Silva, com altos
feitos de bravura e gentileza, muitas cenas de amor, lealdade e deslealdades, e
sangue de todas as ralés a correr.
(continua)
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