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Arturo Perez-Reverte |
O Homem esse “Hijo
de puta”
Um escritor espanhol, Arturo
Perez-Reverte que está agora na primeira linha dos escritores
com grande saída, traduzido em 29 idiomas com 8 livros adaptados ao cinema e
Membro da Real Academia Espanhola, licenciado em Ciência Política
e Jornalismo, chamou a atenção pelas
suas afirmações desassombradas sobre a avaliação que fazia da verdadeira
natureza da nossa qualidade humana.
Em síntese, o que ele dizia é que, exceptuando alguns casos, o homem é um
grande “hijo de puta”. No contexto da entrevista, este senhor, como resultado
de ter começado muito novo a sua vida como repórter de guerra, testemunhou o
espectáculo dos conflitos bélicos em que a violência adquire
todos os requintes de malvadez
porque, muitas vezes, a simples eliminação do inimigo não chega se não for
acompanhada de dor e sofrimento completamente gratuitos, só explicados pela
malvadez da natureza humana.
E portanto, adiantava ele, não vale a pena vir a moral cristã apregoar que
somos todos bonzinhos, feitos à imagem e semelhança de um Deus infinitamente
bom e que os maus correspondem apenas a algumas ovelhas tresmalhadas porque
essa não é a verdade. Libertem o homem dos códigos de conduta impostos nas
sociedades pelas leis, tribunais e a polícia e aí os teremos ávidos e sequiosos de violência.
Eu creio que este assunto é polémica antiga em que se procurava saber se o
homem era bom e a sociedade é que o pervertia ou se, pelo contrário, o homem é
uma “peste” e só a sociedade é que lhe permite sobreviver, não obstante todos
os conflitos, em relativa harmonia. J.J. Rousseau expôs essa velha questão há já dois séculos e, desde então, ela ainda não
se desactualizou.
Pessoalmente, tive contacto com um palco de guerra e embora, felizmente, não
tenha vivido situações mais escabrosas apercebi-me delas e, no geral, o mínimo
que testemunhei foi um profundo desprezo pela vida humana e com mais ou menos
requintes de malvadez: porque era
preto, porque era terrorista, porque era o inimigo. As pessoas eram eliminadas
apenas porque havia uma guerra que tudo justificava e, tal como no Vietnam, as
populações aparentadas com o inimigo ou eram sumariamente executadas ou
torturadas para revelarem segredos quer os possuíssem ou não.
No meu caso, emboscaram um Unimog e mataram 6 militares, meus amigos, a quem eu
tinha dado a recruta, seis jovens, um deles tinha deixado em Portugal a mulher
e um filho pequeno. Chamava-lhe o "Setúbal" porque era de lá, trabalhava como
empregado de mesa e era o mais inteligente de todos. Durante a instrução só
estava autorizado a responder às minhas perguntas quando ninguém mais soubesse
e depois… ali estava ele, morto com uma bala no meio da testa e se ainda tinha
alguma roupa foi porque chegámos a tempo de evitar que o despissem
completamente e quem sabe, profanassem o corpo.
Isto aconteceu no continente
africano, podia ter sido no asiático, mas também se passou aqui,
ao nosso lado, aquando da revolução civil espanhola, a pretexto de que uns eram
comunistas e os outros patriotas e por causa disso centenas de espanhóis foram
levados para a Praça de Touros de Badajoz e assassinados. E mais recentemente,
na Bósnia, onde populações inteiras, entre 60000 a 200000 eram mortas
porque as autoridades sérvias entenderam que o facto de serem de origem
muçulmana não lhes dava direito à vida.
Recordo, dessa altura, a história de um sérvio que vivia na Bósnia (eles
representavam 37% da população) e que era vizinho de uma senhora que pertencia
à maioria muçulmana, 44%. Durante anos cumprimentaram-se normalmente como
vizinhos mas quando as autoridades desencadearam a perseguição às pessoas de
etnia muçulmana ele, pura e simplesmente, violou e matou a senhora.
Provavelmente, Arturo Perez-Reverte é capaz de ter razão e o homem é mesmo um
“hijo de puta.” Dêem-lhe um motivo, um pretenso motivo, e ele atira-se ao
vizinho e mata-o com requintes de
malvadez.
Felizmente, excluindo a criminalidade que começa a ser preocupante em que
jovens sem referências matam à pancada um pobre desgraçado sem defesa, vivemos
numa sociedade pacífica e ordeira mas seremos nós mesmos pacíficos e ordeiros? A
tal senhora seria capaz de afirmar a pés juntos, sem hesitar, que o seu vizinho
era pacífico e ordeiro.
Existe um generalizado apelo da moral religiosa, de todas as religiões, aos
comportamentos que respeitem a vida do semelhante. É um ponto comum a todas
elas: não matarás! - e eu pergunto-me se os inspiradores deste conceito moral nas
várias religiões não estariam preocupados com a componente violenta da
personalidade humana a ponto de transformarem num preceito religioso a
proibição de matar o semelhante.
Na história da humanidade julgo que há um momento em que as coisas se agravam
no que se refere à violência entre os homens, e esse momento foi aquele a
partir do qual se criaram as condições para a acumulação da riqueza e que
coincidiu com o sedentarismo, a prática da agricultura e da pastorícia.
A este propósito lembro-me sempre de dois exemplos: os pigmeus e os
bosquímanos, os homens da floresta e os das zonas desérticas do Kalahari. Uns e
outros têm duas coisas em comum: são os povos mais pobres e mais pacíficos do
mundo tendo desenvolvido no seio da sua cultura um enorme respeito pela vida,
não só deles mas também dos animais de que dependem, cultivando,
simultaneamente, a prática de uma vida social em paz e harmonia.
A humanidade acumulou muito mais anos de experiência como populações nómadas
colectoras-caçadoras do que vivendo de forma sedentária da agricultura ou
pastoreando os seus rebanhos e mais tarde desenvolvendo as várias civilizações
até aos dias de hoje.
São duas fases completamente distintas do nosso passado colectivo, em que na
primeira vivíamos em pequenos grupos organizados à volta de anciãos que com a
idade acumulavam conhecimentos por vezes decisivos à sobrevivência do grupo, em
contacto estreito com a natureza e dela dependendo totalmente.
Na segunda, começamos a operar sobre a natureza, invadimos as suas entranhas
para lhe retirarmos os minerais que os artífices transformariam em ferramentas,
alfaias e armas, domesticámos as ervas e os animais selvagens para termos
fartura de carne e de pão e mais importante que isto, constituí-mo-nos em
sociedades altamente estruturadas e hierarquizadas
com muitos e complexos poderes dentro de si.
Na primeira fase, a violência não era especialmente importante, pelo contrário,
era um estorvo, um factor de perturbação, indesejável, não servia os objectivos
do grupo. O que era importante era conhecer bem a natureza que nos rodeava e da
qual dependíamos e para isso era necessário, em primeiro lugar, ser-se um bom
observador, perspicaz, com capacidade para desenvolver técnicas de grupo ao
serviço de estratégias de caça e de pesca, embora hoje se saiba que a
alimentação era muito mais constituída a partir daquilo
que as mulheres e as crianças apanhavam no campo do que propriamente com o produto das
caçadas.
A inteligência, a agilidade, a valentia, a habilidade, a capacidade de
liderança eram qualidades que serviam os objectivos do grupo, a violência não
servia para nada e as pessoas violentas eram indesejáveis porque a própria
liderança dos grupos, para a sobrevivência deles próprios, tinha que estar a
cargo dos chefes naturais, daqueles que revelavam maiores aptidões para serem
incontestados líderes.
A este propósito recordo-me sempre daquele oficial que em pleno teatro de
guerra chamou o subalterno e disse-lhe: você, nesta situação, é o que tem
maiores qualidades para salvar as nossas vidas: assuma o comando. Este, era o chefe natural. No tempo do paleolítico este engano, corrigido a tempo pelo oficial. esperemos, nunca teria
ocorrido e a natureza faz exactamente o mesmo quando, teste após teste, selecciona o macho mais
forte e mais apto para progenitor da geração seguinte.
A violência chega com os Impérios e as Civilizações. Ela é o preço que a
humanidade tem pago para crescer, para evoluir na senda do progresso, constituindo o maior desafio porque sem ela não teríamos chegado aonde chegámos e
com ela as nossas vidas e o nosso destino colectivo estão ameaçados.
Para chegarmos ao espaço, à Internet, aos telemóveis, aos grandes mercados, à
globalização, o homem teve que se recriar a si próprio entre outras coisas, como
um grande “hijo de puta” como diz o nosso amigo Arturo Perez- Reverte.
É sempre assim... não há bela sem senão.
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