Filhos das Extremas
Numa vinha do Ribatejo,
as crianças brincavam por entre o emaranhado das cepas ainda por podar e que
por isso apresentavam aquele aspecto de desalinho e desmazelo a fazer lembrar
os palcos das batalhas do antigamente uma vez acabada a luta e antes de retirados
os corpos e os destroços que tinham algum valor.
Retirado o produto do
saque a vinha fica uns meses ao abandono e para se retemperar e esquecer da
afronta hiberna durante o Inverno que se aproxima e algumas vezes afunda as
mágoas nas águas das cheias do rio Tejo, quando o este ainda tinha cheias.
Mas até lá, entre outras coisas, há que combater o míldio e não há que se
atrasar senão a praga avança irremediavelmente e o que haveria de ser para os
homens irá para “os bichinhos”.
É a
fase mais difícil quando, a partir do início da Primavera, a doença começa a
atacar. O Manuel e a mulher assumem o papel de enfermeiros e todos os dias, bem
cedo, lá os temos à cabeceira do doente, mirando e remirando as folhas à
procura daqueles sinaizinhos brancos, indicadores da doença que depois passará
também para os cachos porque a descoberta precoce desses sinais, como em todas
as doenças, é decisiva para o êxito no combate à praga.
A mulher, especialmente vocacionada para as tarefas laboratoriais, prepara o
remédio dissolvendo em água, no pequeno tanque que existe para esse efeito, a
meio da propriedade, o produto que, de todos quantos existem, lhes parece ser o
melhor para debelar a doença.
Depois, enche o depósito do pulverizador, ajuda a colocá-lo nas costas do
marido e o Manuel lá vai, vinha fora, sem ter perdido o tino à última cepa que
pulverizou quando todas parecem exactamente iguais e retoma a tarefa procurando
atingir com os borrifos todas as folhas mesmo as menos acessíveis.
Atentemos nos seus movimentos, reparemos na sua expressão e veremos nele, não o
trabalhador agrícola mas um especialista de saúde que põe em cada gesto a
precisão de uma técnica não aprendida na escola, antes uma herança do seu pai e
que ele executa com uma grande dose de amor.
Se não conseguirmos ver estas pequenas diferenças do gesto e da expressão nunca
compreenderemos porque a ligação do homem à terra é tão diferente de todas as
outras. Não é o Manuel que é dono daquela terra, é ela que é dona dele.
Mas não é fácil a vida destas famílias, as vinhas não têm dimensão suficiente
para rentabilizar a compra de máqui nas
que tornariam os trabalhos mais rápidos e por conseguinte mais baratos, para
além de que uma atitude muito individualista e desconfiada dos proprietários
das terras, não permite trabalhá-las em conjunto fazendo grande o que é
pequeno.
Por isso, é sem esperança que o Manuel olha para as extremas da sua vinha
percebendo que enquanto elas se mantiverem onde estão a sua vida não passará da
cepa torta.
Do preço do vinho também não há que esperar grande coisa. Se há anos de
fartura, que até os há, logo o seu valor cai por aí abaixo de tal forma que nos
anos de escassez se chega a ficar com mais dinheiro no fim da safra.
As grandes casas agrícolas, essas é que se safam, com tantos hectares de vinha
podem ter tractores que lavram a terra e procedem à pulverização mecânica e nos
anos de fartura armazenam o vinho em grades depósitos que vendem mais tarde
quando o preço lhes convém.
O Manuel sabia que era assim mas nada podia fazer, os trabalhos da vinha
sabia-os ele de olhos fechados, a sua infância, tal como a do seu filho agora,
tinha-a passado entre as cepas daquela vinha, quem sabe mesmo senão teria sido
concebido no meio delas. A vinha era a sua segunda casa, à sombra da oliveira
ao pé do tanque onde se faz a calda para as “curas” tinha a mãe lhe dado de
mamar e era lá, num berço improvisado, que ele dormira as suas primeiras sestas
de criança.
Estava fora de causa vender ou arrendá-la. Que pensaria o pai lá no outro
mundo, depois daquele esforço que fizera anos antes de morrer para “armar” a
vinha, renová-la com castas novas, preencher as falhas das que entretanto
tinham morrido e dar-lhe todo aquele aspecto de propriedade dos ricos só que em
ponto pequenino já se vê e… o que pensaria ele próprio?
E o seu rapaz, como haveria de se governar só com aquela vinha que mal dava
para ele e para a mulher? Lá teria que ir trabalhar para algum dos ricos da
terra, que ele não tinha problemas com o trabalho, era sossegado, tinha boas
mãos e sempre aprendera tudo com muita facilidade. Tomara o patrão que viesse a
ficar com ele mas trabalhar na terra que é nossa é muito diferente, as cepas é
como se fossem o prolongamento da família e elas também percebem isso e o rapaz
já demonstrava o mesmo apego.
O Manuel nunca ouvira falar na escola na família dos Habsburgos da Casa
Imperial da Áustria. O professor só lhe ensinara os Reis de Portugal e alguns,
agora, ele já os esquecera mas houve tempo em que os soubera a todos com as
dinastias a que pertenciam e tudo… mas dos Habsburgos, esses, nunca ouvira
falar.
O mesmo já não diria dos “filhos das extremas” embora fosse um assunto mais ou
menos tabu lá na aldeia, daqueles que eram falados em conversas surdas
do…”cala-te boca”, e mais pelas mulheres do que os homens que fugiam desse tema
mas não deixavam de pensar nele porque o assunto interessava a ambos por igual.
No entanto, era mais conversa de travesseiro…que é também para isso que servem
as mulheres.
A coisa era mais notada por altura das bodas, quando os pais dos noivos eram
donos de vinhas que confrontavam as extremas umas com as outras e eram
inevitáveis alguns sorrisos e aquelas frases perdidas…«lá vamos ter mais filhos
das extremas».
Claro que havia uma intenção premeditada de aumentar o tamanho das propriedades
pelo casamento dos filhos, mesmo quando tinham relações próximas de parentesco.
Não quer dizer que os jovens não se gostassem, conheciam-se desde pequenos,
brincaram em criança nas extremas das vinhas que eram dos pais, enquanto eles
trabalhavam, mais tarde foram aos mesmos bailes e tudo sempre abençoado pela família.
Era
tudo tão intrincado que era difícil dizer onde acabava a verdade e começava a
má-língua. Eram zonas de fronteira tal como as extremas das vinhas.
O que eles
tinham era mais pudor que a família dos Habsburgos que nem sequer dava para
disfarçar a intenção dos casamentos entre parentes chegados mas o povo, por
ignorância, falava em
maldição.
Contudo, com esta astuta política de
casamentos, concebida por Maximiliano, pouparam-se muitas guerras, muitas vidas
e muito sofrimento que de outra forma seriam inevitáveis para manter e aumentar
o poder desta família na Europa que, veja-se, começa quando o Rei Rodolfo de
Roma conqui stou a Áustria em 1273 e
só terminou em 1918 com a 1ª G.G. mundial.
Pelo
meio governaram a Europa como Imperadores, Reis, Duques e Arqui duques de vários países, inclusive de Portugal,
no tempo da denominação Filipina, mesmo defeituosos, melancólicos e meio loucos
pela doença de que padeciam.
Mas,
destas coisas, o Manuel e a mulher não sabiam nada e nesse dia à noite,
deitados na cama, ele cansado de um dia inteiro com o pulverizador às costas
puxando para cima e para baixo o manípulo, nem sei quantas milhares de vezes, e
ela derreada dos braços de mexer a calda e carregar os pulverizadores,
começaram a falar do filho:
- Oh homem, já reparaste
que o nosso rapaz parece agradado da filha dos nossos vizinhos, aqueles
que têm a vinha pegada com a nossa, com
a extrema também a acabar na vala grande onde está a figueira que dá os figos
pingo de mel?
- Então, e oh mulher, eu
não sei onde fica a figueira e onde acaba a vinha do vizinho? - Mas a rapariga ainda é nossa sobrinha…
- Oh!, é prima dele em 2º grau, já se viram coisas bem piores e a vinha... olha
que ainda é um bom bocado maior que a nossa, não estará tão bem tratada, é
verdade, mas isso é porque o Hermenegildo não chega aos teus calcanhares e
depois, também com aquela doença que ele tem já não vai longe…
-E a rapariga, gostará dele?
- Ora, vê-se mesmo que és homem, nunca
reparas em nada, deixa isso por minha conta e dorme que amanhã é outro dia de
canseira…
… Algures, na década de sessenta, no seio de uma família de uma freguesia no
coração do Ribatejo deste Portugal pequenino, que nunca conheceu a política
casamenteira concebida pelo rei Maximiliano da Casa Imperial da Áustria.
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