quarta-feira, novembro 14, 2012

Foresta do Maiombe em Cabinda, Angola.

O ZAMBIANO





Em termos ideológicos o racismo é uma afronta à inteligência humana. No plano dos comportamentos é, pura e simplesmente, uma cobardia. Partir de uma diferença rácica, cultural ou religiosa para estabelecer uma relação de domínio ou de superioridade sobre um nosso semelhante é a confissão de uma menoridade, o aproveitamento de uma situação de injustiça para adquirimos vantagens que não merecemos, é a força dos fracos.

Convivi um pouco com esse racismo nos anos em que trabalhei em Moçambique, de 1972/75, como funcionário público, antes e depois da independência daquele território. Os primeiros contactos com alguns conterrâneos meus na antiga Lourenço Marques, funcionários como eu ali radicados há muitos anos, deixaram-me perfeitamente chocado e estupefacto.

Encontrei pessoas que me pareciam sinceras quando afirmavam a superioridade das pessoas de raça branca relativamente às da raça negra. Assim, sem mais nada: é preto é inferior, é branco é superior.

Claro que as relações de vizinhança e proximidade e os contactos frequentes com o regime de Apartheid da toda-poderosa África do Sul, eram, em parte, a explicação para estas atitudes.

Durante muitos anos, a África colonial portuguesa, funcionou como terra de degredo, de isolamento, especialmente no interior, o chamado mato, onde esse isolamento relativamente a outros europeus o era na versão literal do termo durante, às vezes, tempos esquecidos.

Lembro-me de um Administrador, no Distrito de Cabinda, lá nas florestas do Maiombe, terra de gorilas, que ninguém tinha oportunidade de ver - "estou aqui há catorze anos e só vi um a atravessar a estrada" -  e do terrível e diminuto mosquito “mirui” que ataca ao pôr do sol, que quando nos recebeu no edifício da Administração, a mim e aos meus colegas numa visita de estudo em 1960, dizia ao jantar que de Portugal, a que ele chamava a metrópole, só lembrava que tinha saído no dia em que tinham morto o Sidónio (14 de Dezembro de 1918) Pais e que a Luanda já não ia há anos.

Os colonos viviam em comunidades obrigatoriamente muito pequenas e solidárias e raramente vinham à Europa que, na maioria dos casos, rejeitavam porque lhes traziam más lembranças ou porque nas suas terras de origem perdiam estatuto e privilégios.

Com uma instrução que pouco ia para além do saber ler, escrever e contar, sem contactos com o mundo, em termos intelectuais a maioria daquelas pessoas regrediam e ficavam indefesas perante uma ideologia que os “promovia” como  cidadãos e se encaixava completamente nos seus interesses.
De resto, o racismo na África do Sul, começou por ser uma "receita" para a sobrevivência e predomínio de um pequeno grupo de holandeses, alemães e franceses estabelecidos na parte mais meridional do continente africano para apoiar a actividade comercial da Companhia Holandesa das Índias Orientais e que por lá ficaram  vindo a dar origem ao povo Boer que disputou aos ingleses a colonização nesta parte do continente africano.
Em 1950 o racismo, na África do Sul, foi promovido a política oficial de estado sob o nome de Apartheid, “Regime de Segregação Sistemática” e, finalmente, abolido com as eleições de 1994… Paz à sua alma se é que a tinha.

É claro que estas coisas desaparecem oficialmente mas continuam no comportamento das pessoas das gerações que as viveram como marcas e cicatrizes, algumas no corpo mas principalmente na alma.
Com os tempos tudo vai passando à história mas por vezes, quando elas ainda estão frescas, faz bem exorcizá-las através do humor.

Lembro Samora Machel, líder carismático do povo moçambicano, homem de grande inteligência, que tive oportunidade e o gosto de conhecer pessoalmente, dizer naquele seu estilo confiante e muito sorridente, antes da exibição de um grupo folclórico do norte de Moçambique nos jardins da residência do governador da Beira, quando da sua primeira visita, naquele período de transição para a independência:  «bem, vamos lá então ver esses selvagens»

Mas vamos à história do Zambiano, habitante da Zâmbia, ex-Rodésia do Norte e que se tornou independente em 1964, por coincidência, exactamente na data em que eu comandava um destacamento militar numa povoação denominada Lumbala, a cerca de 50km de uma outra, Caripande, que era posto de fronteira com aquele território.

Na  Zâmbia, as autoridades do novo país tudo faziam para fazer esquecer a indignidade do passado discriminatório, próprio do regime racista em que durante tantos anos se vivera e na qual a palavra “preto” era depreciativa e humilhante, e todos pretendiam colaborar no esforço de erradicação desse termo.
Num tribunal, um cidadão era julgado por ser acusado de um crime de atropelamento e durante a audiência dirigindo-se ao Meritíssimo Juiz explicava:
-  Sr. Dr. Juiz, quando o sinal verde do semáforo acendeu eu arranquei com o meu carro e nessa altura o preto atravessou-se…

- Alto aí, interrompe o juiz, não é preto é zambiano.

Perdão, Sr. Dr. Juiz, o zambiano atravessou-se à frente do carro e eu não consegui evitar bater-lhe e quando saí do automóvel para o socorrer o preto virou–se…

- Não é preto, repreende de novo o Dr. Juiz, já lhe disse que é zambiano…

-Estes enganos e as respectivas repreensões continuaram mais ou menos durante todo o julgamento no fim do qual ele acabou por ser absolvido.

- Mais tarde, já fora do Tribunal, um amigo do réu dá-lhe os parabéns pela decisão que lhe foi favorável e de caminho perguntou-lhe:

- Mas afinal, quem é o zambiano?
 - Olha, se queres que te diga não sei mas era a coisa mais parecida com um preto que eu já vi.


…Eu logo avisei que estas coisas deixam marcas…

Site Meter