- Nosso rei
Fundador –
A Batalha de Ourique (III)
Que exércitos podiam eles ajuntar, do pé
para mão, contra o impetuoso príncipe, que atacava de chofre com todas as suas
valentes lanças?
Deste recontro fortuito fizeram os
cronistas, inspirados nas epopeias e nas histórias da Távola Redonda, uma
batalha campal em que, do lado cristão alinharam seiscentos ginetes e seis mil
infantes e do lado muçulmano, segundo os mais exorbitantes, novecentos mil
combatentes e, de acordo com os mais comedidos, cento e vinte mil, sem falar
nas amazonas que caíram pelejando.
Deste jeito, pelo padrão mais cândido, a
cada cristão viriam a caber cerca de cento e quarenta e tantos inimigos, número
que nem um Guliver conseguiria desenvencilhar-se, embora se tratasse de anões
do tamanho de um dedo.
Os portugueses descansaram três dias no
campo da batalha para enterrar os mortos, curar os feridos, e recolher os
despojos.
Não parou ali Afonso Henriques. Ao cabo
de três dias, ala.
Entretanto, caiu uma chuva torrencial
que lavou o terreno e ensanguentou os rios, chegando alguns cronistas a contar
que as águas chegaram ao mar, na foz do rio Guadiana, tintas de sangue.
Mais que isto não era possível para
engrandecer de maior glória o diadema do rei Conqui stador.
Este rei passou mais de metade da vida a
cavalo. A cavalo e acutilando. O cronista Duarte Galvão pinta-o assim:
-
«Era mui grande de corpo e de mui assinada valentia, de força grande e coração
muito maior, e grão cortador da espada, e portanto seu pelejar, onde se topava,
entre todos era avantajado.»
O condado que o pai lhe deixou era
pequeno. Sem poder expandir-se para Norte pois emperrava com a Galiza,
ficaram-lhe as incursões nas planícies ribatejanas possíveis dada a sua mínima
densidade população sarracena.
Sucessivamente, tomou aos mouros Leiria,
Santarém, Sintra e, passando o Tejo em barcaças e jangadas, caiu de improviso
sobre Almada e Palmela, praças confiadas a desprecavidos alcaides.
Lisboa era o ninho dos marabus africanos
que ele, com os olhos despeitado de cristão, via erguer-se na bacia do Tejo,
sobre as colinas, com os seus muros irrepreensivelmente brancos e acima de tudo,
tal como uma papoila, os talhados vermelhos das casas na parte interior do
castelo altaneiro.
Porque os cruzados passavam agora em
navios a caminho da Terra Santa, na mira mais de conqui star
riquezas do que na de merecer a bem-aventurança, porque não vinham eles saciar
a fome na cidade que se havia tornado o celeiro e armário dos haveres
sarracenos?
Até que um dia, numa bela manhã de sol,
eis que os navios côncavos, a cruz de Cristo chagada na bandeira, encostam a
proa à margem direita do rio plácido e deserto. Depois, eles pelo Sul e
Nascente e Afonso Henriques pelo Norte, puseram cerco à cidade, primeira
fortaleza da moirama peninsular.
A cidade caiu nas mãos dos cristãos.
Quando a entregaram ao príncipe, ou melhor, quando pôde tomar conta dela,
estava chocha como uma noz esvaziada.
Os sitiadores não se tinham contentado
com pilhar as riquezas; aqui lo que
não puderam carregar para as naus, destruíram-no. Não violaram apenas as
moirinhas núbeis, degolaram-nas depois de saciados; não se limitaram a fazer
escravos, trucidaram a população. Nos velhos e crianças a mortandade, pode-se
dizer, foi total.
Era sempre assim na guerra de extermínio
travada entre a Cruz e o Crescente. Alguns cruzados, os Ligéis, os Rolins, os
Liberges, a quem a terra sorriu, tanto mais que abarrotavam com a presa feita,
instalaram-se no agro-ribatejano e aí lançaram raízes.
Não lhes faltava nada, carne para o
gozo, servos para virar a terra, sol, luz e oiro, e nunca mais pensaram em conqui star o Céu libertando o Santo Sepulcro.
Afonso Henriques precisava de gente nas
muitas léguas do chão conqui stado e
acarinhou o mouro, que constituía o núcleo importante na mescla populacional da
Hispânia.
A sua última aventura guerreira levou-o
a Badajoz, onde a sorte das armas não lhe foi tão propícia não só porque perdeu
muita gente mas porque partiu uma perna.
Fernando de Leão viu-o naquele estado
calamitoso e, como príncipe cristão deixou-o ir em boa paz. Também Badajoz era
como um recife no abismo peninsular coberto tanto por vagas sarracenas como
neo-visigóticas. No fundo, Terra de ninguém.
As almas supersticiosas quando viram o
rei, de barbas hirsutas e olhos maus a praguejar na maca que o levava, logo
evocaram a maldição que depois do encontro de S. Mamede a mãe lhe lançou:
-
«Deitas-me ferros às pernas, filho desnaturado?! Deus te castigará nas tuas,
que to juro eu!
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