quinta-feira, dezembro 06, 2012


AFONSO HENRIQUES
 - REI FUNDADOR (V)



Não havia língua que melhor soubesse prometer, cantar uma fábula que a musicalíssima língua de Petrarca. Todavia era a filha primogénita da latina, que não contava no seu léxico, aliás sóbrio no essencial, o termo sim.

Pois D. Afonso Henriques não ligava grande importância ao prometer e ao faltar frente a frente a outros príncipes, no que provou ter em si o germe do prefeito homem das chancelarias.

Desmentindo-se, e não há que apontar no rol das prendas do primeiro rei faculdade tão lucilante como essa do ludíbrio verbal.

De resto, não está provado que não fosse João Peculiar ou o chanceler Julião que por ele fizessem esse jogo com pau de dois bicos em que os políticos modernos atingiram a subtileza máxima, aprendida nos mistifórios de Aristóteles e no ilusionismo dos prestidigitadores. Mas se não fosse assim – com papas e bolos se apanham os tolos – era possível que ele, apenas pelo vigor do braço, virasse amanhasse tão grande geira?

D. Afonso Henriques era religioso, tão maciçamente religioso como o exigia a política de resistência ao muçulmano, que ameaçava subverter o mundo ocidental, e com a Roma pontifícia a cabeça da liga neo-visigótica.

Para ele, e de modo geral, para todo o europeu, a religião tinha-se tornado uma espécie de epitélio da natureza da natureza humana.

Fazia assim parte da vida fisiológica dos indivíduos. Todos os actos vinham tocados de determinação eclesiástica. Daí a estreita e prosaica inteligência que tinha de haver, e de facto havia tanto entre o espírito e Deus, ou entre o homem e o sacerdote, como entre o Príncipe e a santa Sé.

Por isso mesmo o desrespeito ficava na mesma escala da familiaridade. A cada passo os reinantes infringiam pactos e concordatas celebradas com Roma, e o Papa, a cada passo, erguia o látego excomunicatório e fustigava os relapsos e perjuros.

Mas o Santo Padre tanto excomungava como desexcomungava. Da mesma maneira, os príncipes sabiam que a todo o tempo era hora de comprar o indulto, ou mesmo a salvação a poder de dinheiro.

O braço pontifício levantava-se como batuta e acudiam solícitas as pragas do Egipto, os gafanhotos, as lagartas, os ventos ruins e os ares pestilenciais.

Em Portugal, durante a primeira dinastia não houve monarca que não tivesse os seus problemas com a Cúria. Roma era susceptível e ciosa das suas prerrogativas. Compreendia-se. Roma fora a mãe chocadeira da pintainhada latina. Furtarem-se ao cumprimento das obrigações contraídas era negra e intolerável ingratidão. Mas pagavam-no com língua de palmo, bastava o Sumo Pontífice alçar o breve da maldição.

D. Afonso Henriques sentiu várias vezes sobre si o pesado braço do pescador. Por ventura as circunstâncias em que o facto se deu, cobertas hoje com o leve verdete do mito, mas sem que por isso tenham perdido a verdade local, constituem o episódio mais pitoresco e porventura shakspereano da sua existência agitada.

Lá porque as vozes de Dª Teresa, entre ferros, chegassem a Roma, ou o que é mais verosímil, os maravadis de oiro, que o infante ficara de contar para a burra de S. Pedro na qualidade de vassalo e obsequioso cristão, deixassem de tilintar a caminho da Cidade Eterna, o facto é que o bispo de Coimbra, de regresso a Portugal, recebeu o encargo de admoestar o rei. Admoestar e, se tanto se impusesse, lançar o interdito sobre o Reino.

D. Afonso Henriques recebeu com ânimo insofrido a reprimenda – que tinha o Santo Padre que meter o nariz onde não era chamado? – e o prelado tratou de cumprir o mandato que trazia, pelo que excomungou toda a terra, abalando para Roma como uma seta.

Sentiu-se muito o rei quando foi informado e, indo-se logo nessa manhã à Sé e mandado tocar para o Capítulo, disse aos cónegos:

 - Dai-me um Bispo…

 - Bispo temos, como havemos de vos dar outro? Respondeu um menos cobarde.
(continua)

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