- Rei Fundador (VII)
- Hem? Já sabeis que não estou em falso. Mas , bem, bem, ide repousar, que se faz
tarde, e amanhã falaremos.
Recolhendo-se o cardeal à pousada,
mandou os archeiros deitar ração de cevada às mulas e apressar para partir. Meia-noite
dada, acudiram os clérigos a sua convocação, ensonados uns, cara de caso,
outros. E perante todos eles, boqui abertos,
excomungou a cidade e o reino.
Isto feito, cavalgou e, ainda a manhã
não era fora, tinha botado mais de duas léguas longe de Coimbra. Quando, ao
levantar, D. Afonso Henriques o soube, pediu que lhe trouxessem o cavalo mais
veloz. Foi-lhe nascer o sol, levado em furioso galope a corta mato, perto de
Poiares.
Um pouco mais adiante foi encontrar o
cardeal-legado que seguia com a comitiva. E, correndo para ele, sem aviso,
deitou-lhe a mão esquerda ao cabeção, ao passo que com a direita desembainhava
a espada:
-
Espera traidor que é hoje o teu último dia!...
Interpuseram-se os cavaleiros, que o
tinham seguido a carga cerrada:
-
Não o mateis, senhor, que então é que vos tomam por herege verdadeiro!
-
Seja, não o mato, mas há-de desfazer tudo quanto fez e já tudo quanto fez…
-
Senhor - gemeu o cardeal – tudo o que
vós qui serdes eu o farei de boa
mente.
-
Então desexcomungai tudo quanto excomungaste…
-
Senhor, eu desexcomungo em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo.
-
Prantai para fora dos alforges quanto levais… Prata, oiro e mais coisas de
valia…
Os arrieiros esvaziaram os alforges que,
de facto, iam a abarrotar de preciosidades.
Deixai também as bestas, que preciso
delas para a guerra.
Bastam-vos três…
Resignou-se o legado a cumprir mais esta
condição, julgando que era a derradeira.
-
Tomai agora o compromisso de que, mal chegardes a Roma, me enviareis um breve
de Sua Santidade, breve em que se declare com todos os ff e rr que nunca mais
em tempo algum eu e Portugal que ganhei com esta espada, serão excomungados…
Anuiu o cardeal, e Afonso Henriques fez
saber qual a condição final, aceite aliás submissamente como as demais. O
sobrinho do cardeal ficava em refém até chegar o documento de Roma. Se no prazo
de quatro meses não viesse, então é porque não havia nada a fazer, e
cortava-lhe a cabeça.
El-rei, depois, despiu o pelote,
desafivelou a camisa de malha usada
pelos guerreiros do seu tempo e perante os olhos estupefactos do cardeal e dos
cavaleiros, mostrou o peito lanzudo coberto de cicatrizes e em voz cava,
martelada proferiu:
- Cardeal, fazei-me o favor de dizer a
S.S. que vos pus bem à vista a cartilha das minhas heresias… e, um por um, foi
apontando os golpes e enunciando as cidades, vilas e lugares onde os tinha
apanhado e, com voz patética, concluiu:
-
Todos estes lanhos e talhadas as recebi nas batalhas contra os inimigos da
nossa Santa Fé. Dizei-o ao Papa.
Tendo chegado a Roma, qui s desautorizá-lo o Sumo Pontífice recusando-lhe a
letra prometida a par das infalíveis censuras.
Respondeu-lhe o cardeal legado:
- Senhor Santo Padre, se vós vos vísseis
nos assados em que eu me vi, um homenzarrão daqueles a agarrar-vos a cabeça com
a mão esquerda, a espada na mão direita, o cavalo grande como uma torre, a
escavar a terra, parecendo que vos estava abrir a cova, ah, não darias apenas
um bula, mas a própria cadeira de S. Pedro! (continua)
Extraído da obra de Aqui lino Ribeiro – Príncipes de Portugal –
Suas Grandezas e Misérias.
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