A História Secreta da Renúncia de Bento XVI
Mais do que
querelas teológicas, são o dinheiro e as contas sujas do banco do Vaticano os
elementos que parecem compor a trama da inédita renúncia do Papa. Um ninho de
corvos pedófilos, articuladores de complôs reaccionários e ladrões sedentos de
poder, imunes e capazes de tudo para defender sua facção.
A hierarqui a católica deixou uma imagem terrível de seu
processo de decomposição moral na linha, de resto, do que foi sempre a sua
história desde que o Imperador Constantino se “converteu”, num acto de grande
sagacidade política, à religião dos sobreviventes de Jesus até aí ferozmente
perseguidos, transformando-a na religião oficial do Império Romano.
O artigo é de Eduardo Febbro, jornalista
argentino. Trabalha na Redacção da Rádio France Internacional e é
correspondente do Jornal Página 12 em Paris.
Eduardo Febbro
Os especialistas em
assuntos do Vaticano afirmam que o Papa Bento XVI decidiu renunciar em Março
passado, depois de regressar de sua viagem ao México e a Cuba.
Naquele momento, o Papa, que encarna o que o Director da "École Pratique des Hautes Études" de Paris (Sorbonne), Philippe
Portier, chama “uma continuidade pesada” de seu predecessor, João Paulo II,
descobriu em um informe elaborado por um grupo de cardeais, os abismos nada
espirituais nos quais a igreja havia caído: corrupção, finanças obscuras, guerras
fratricidas pelo poder, roubo massivo de documentos secretos, luta entre
facções, lavagem de dinheiro.
O Vaticano era um ninho de hienas enlouquecidas,
um pugilato sem limites nem moral alguma onde a cúria faminta de poder
fomentava delações, traições, artimanhas e operações de inteligência para
manter suas prerrogativas e privilégios à frente das instituições religiosas.
Muito longe do céu e muito perto dos pecados
terrestres, sob o mandato de Bento XVI o Vaticano foi um dos Estados mais
obscuros do planeta. Joseph Ratzinger teve o mérito de expor o imenso buraco
negro dos padres pedófilos, mas não o de modernizar a Igreja ou as práticas Vaticanas.
Bento XVI foi, como assinala Philippe Portier,
um continuador da obra de João Paulo II: “desde 1981 seguiu o reino de seu
predecessor acompanhando vários textos importantes que redigiu: a condenação
das teologias da libertação dos anos 1984-1986; o Evangelium vitae de 1995 a propósito da doutrina
da igreja sobre os temas da vida; o Splendor veritas, um texto fundamental
redigido a quatro mãos com Wojtyla”. Esses dois textos citados pelo
especialista francês são um compêndio prático da visão reaccionária da Igreja
sobre as questões políticas, sociais e científicas do mundo moderno.
O Monsenhor Georg Gänsweins, fiel secretário
pessoal do papa desde 2003, tem em sua página web um lema muito paradoxal:
junto ao escudo de um dragão que simboliza a lealdade o lema diz “dar
testemunho da verdade”. Mas a verdade, no Vaticano, não é uma moeda corrente.
Depois do escândalo provocado pelo vazamento da
correspondência secreta do Papa e das obscuras finanças do Vaticano, a cúria
romana agiu como faria qualquer Estado. Buscou mudar sua imagem com métodos
modernos. Para isso contratou o jornalista dos americano Greg Burke, membro da
Opus Dei e ex-integrante da agência Reuters, da revista Time e da cadeia Fox.
Burke que tinha por missão melhorar a deteriorada imagem da Igreja. “Minha ideia é
trazer luz”, disse Burke ao assumir o posto. Muito tarde. Não há nada de claro
na cúpula da Igreja católica.
A divulgação dos documentos secretos do Vaticano
orquestrada pelo mordomo do Papa, Paolo Gabriele, e muitas outras mãos
invisíveis, foi uma operação sabiamente montada cujos detalhes continuam sendo
misteriosos: operação contra o poderoso secretário de Estado, Tarcisio Bertone,
conspiração para empurrar Bento XVI à renúncia e colocar em seu lugar um
italiano na tentativa de frear a luta interna em curso e a avalanche de
segredos, os vatileaks que fizeram afundar a tarefa de limpeza confiada a Greg
Burke. Um inferno de paredes pintadas com anjos não é fácil de redesenhar.
Bento XVI acabou enrolado pelas contradições que
ele mesmo suscitou. Estas são tais que, uma vez tornada pública sua renúncia,
os tradicionalistas da Fraternidade de São Pio X, fundada pelo Monsenhor
Lefebvre, saudaram a figura do Papa.
Não é para menos: uma das primeiras missões que
Ratzinger empreendeu consistiu em suprimir as sanções canónicas adoptadas contra
os partidários fascisóides e ultra-reaccionários do Mosenhor Levebvre e, por
conseguinte, legitimar no seio da igreja essa corrente retrógada que, de
Pinochet a Videla, apoiou quase todas as ditaduras de ultra-direita do mundo.
Bento XVI não foi o Sumo Pontífice da luz que seus retratistas se empenham em pintar, mas sim o contrário. Philippe Portier, assinala a este respeito que o Papa “se deixou engolir pela opacidade que se instalou sob seu reinado”. E a primeira delas não é doutrinária, mas sim financeira.
Bento XVI não foi o Sumo Pontífice da luz que seus retratistas se empenham em pintar, mas sim o contrário. Philippe Portier, assinala a este respeito que o Papa “se deixou engolir pela opacidade que se instalou sob seu reinado”. E a primeira delas não é doutrinária, mas sim financeira.
O Vaticano é um tenebroso gestor de dinheiro e
muitas das querelas que surgiram no último ano têm a ver com as finanças, as
contas maqui adas e o dinheiro
dissimulado. Esta é a herança financeira deixada por João Paulo II, que, para
muitos especialistas, explica a crise actual.
Em Setembro de 2009, Ratzinger nomeou o banqueiro
Ettore Gotti Tedeschi para o posto de Presidente do Instituto para as Obras de
Religião (IOR), o Banco do Vaticano. Próximo à Opus Deis, representante do
Banco Santander na Itália desde 1992. Gotti Tedeschi participou da preparação
da encíclica social e económica Caritas in veritate, publicada pelo papa Bento
XVI em Julho passado. A encíclica exige mais justiça social e propõe regras
mais transparentes para o sistema financeiro mundial. Tedeschi teve como objectivo
ordenar as turvas águas das finanças do Vaticano.
As contas da Santa Sé são um labirinto de
corrupção e lavagem de dinheiro cujas origens mais conhecidas remontam ao final
dos anos 80, quando a justiça italiana emitiu uma ordem de prisão contra o
arcebispo norte-americano Paul Marcinkus, o chamado “banqueiro de Deus”,
presidente do IOR e máximo responsável pelos investimentos do Vaticano na
época.
João Paulo II usou o argumento da soberania
territorial do Vaticano para evitar a prisão e salvá-lo da cadeia. Não é de estranhar,
pois devia muito a ele.
Nos anos 70, Marcinkus havia passado dinheiro
“não contabilizado” do IOR para as contas do Sindicato polaco Solidariedade,
algo que Karol Wojtyla não esqueceu jamais.
Marcinkus terminou seus dias jogando golfe em
Phoenix, no meio a um gigantesco buraco negro de perdas e investimentos
mafiosos, além de vários cadáveres.
No dia 18 de junho de 1982 apareceu um cadáver
enforcado na ponte de Blackfriars, em Londres. O corpo era de Roberto Calvi, Presidente
do Banco Ambrosiano. Seu aparente suicídio expôs uma imensa trama de corrupção
que incluía, além do Banco Ambrosiano, a loja maçônica Propaganda 2 (mais
conhecida como P-2), dirigida por Licio Gelli e o próprio IOR de Marcinkus.
Ettore Gotti Tedeschi recebeu uma missão quase
impossível e só permaneceu três anos a frente do IOR. Ele foi demitido de forma
fulminante em 2012 por supostas “irregularidades” em sua gestão.
Tedeschi saiu do banco poucas horas depois da
detenção do mordomo do Papa, justamente no momento em que o Vaticano estava sendo
investigado por suposta violação das normas contra a lavagem de dinheiro.
Na verdade, a expulsão de Tedeschi constitui
outro episódio da guerra entre facções no Vaticano. Quando assumiu seu posto,
Tedeschi começou a elaborar uma informação secreta onde registou o que foi
descobrindo: contas secretas onde se escondia dinheiro sujo de “políticos,
intermediários, construtores e altos funcionários do Estado”. Até Matteo
Messina Dernaro, o novo chefe da Cosa Nostra, tinha seu dinheiro depositado no
IOR.
Aí começou o infortúnio de Tedeschi. Quem
conhece bem o Vaticano diz que o banqueiro amigo do Papa foi vítima de um
complô armado por conselheiros do Banco com a protecção do Secretário de Estado,
Monsenhor Bertone, um inimigo pessoal de Tedeschi e responsável pela comissão
de cardeais que fiscaliza o funcionamento do Banco. Sua destituição veio
acompanhada pela difusão de um “documento” que o vinculava ao vazamento de
documentos roubados do Papa.
Mais do que querelas teológicas, são o dinheiro e as contas sujas do banco do Vaticano os elementos que parecem compor a trama da inédita renúncia do papa. Um ninho de corvos pedófilos, articuladores de complôs reaccionários e ladrões sedentos de poder, imunes e capazes de tudo para defender sua facção.
Mais do que querelas teológicas, são o dinheiro e as contas sujas do banco do Vaticano os elementos que parecem compor a trama da inédita renúncia do papa. Um ninho de corvos pedófilos, articuladores de complôs reaccionários e ladrões sedentos de poder, imunes e capazes de tudo para defender sua facção.
A hierarqui a
católica deixou uma imagem terrível de seu processo de decomposição moral. Nada
muito diferente do mundo no qual vivemos: corrupção, capitalismo suicida, protecção
de privilegiados, circuitos de poder que se auto-alimentam, o Vaticano não é
mais do que um reflexo pontual e decadente da própria decadência do sistema.
Tradução: Katarina Peixoto
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